quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Quem rouba um cego...

Ariosto entrou no ônibus e sentou-se no banco que fica atrás do motorista, reservado às pessoas portadoras de deficiência ou idosas. Trazia sua bengalinha, prova de sua deficiência visual. O banco estava vazio, e ele sentou junto à janela. Entrou, no ponto seguinte um sujeito estranho, que depois de parar por alguns segundos em frente à catraca, sentou-se junto a ele, ao corredor.
Era um mulato alto e forte, e parecia muito alegre. Entrou cantarolando, de modo espalhafatoso, e estendeu a mão a Ariosto, cumprimentando-o ruidosamente. Fez perguntas, comentou vários assuntos, como se fossem velhos conhecidos. Ariosto ia respondendo por monossílabos. O estranho cumprimentou também o motorista, fazendo-o estender o braço direito para trás sem deixar a direção do coletivo.
Alguns minutos depois levantou-se e pediu ao motorista que o deixasse no ponto seguinte, alegando não ter dinheiro para a passagem. "Nós não somos amigos, meu camarada?" O motorista, fazendo gestos indicando que o cara era pinéu, começou a encostar o ônibus.
De maneira casual, automática, Ariosto colocou a mão no bolso direito da calça e percebeu que estava vazio.
- Não abra a porta, motorista! Esse sujeito me roubou!
O motorista deu uma freada brusca. O sujeito fez cara de espanto e nem abriu a boca para protestar. Os demais passageiros, quase ao mesmo tempo, levantaram-se e passaram a xingá-lo, e só não o agredram fisicamente porque a catraca o impedia. Logo surgiu uma viatura da polícia, que intimou o motorista a abrir a porta.
O indivíduo não esboçou qualquer gesto de fuga. Ariosto e o motorista, falando ao mesmo tempo, explicaram o que acontecia.
Os policiais apenas escutaram com certa impaciência, pedindo que cada um falasse por sua vez. Depois os homens da "justa" agarraram o cara e colocaram, aos trancos, no porta-mala da viatura, sem que ele esboçasse qualquer reação. Convidaram Ariosto a entrar na porta da frente, anotaram os dados do motorista, para ouvi-lo posteriormente, e intimaram três passageiros a acompanhá-los até a chefatura, como testemunhas. Ao contrário do que costuma acontecer, todos concordaram, e se fosse preciso haveria mais testemunhas. Todos se indignam contra ladrões, principalmente contra quem tem coragem de roubar um pobre ceguinho.
- Eu tinha vinte e dois reais no bolso da calça - explicou Ariosto à autoridade. - Uma nota de dez, duas de cinco, uma de dois e uma de um real. Esse cidadão sentou-se ao meu lado, começou a tagarelar, e quando levantou-se, notei falta do meu dinheiro. Só pode ser ele.
- Como o senhor pode ter certeza dessa quantia, e de quantas notas, exatamente, levava? - perguntou o comissário.
Sou deficiente visual, e por isso mesmo sou obrigado a prestar muita atenção em tudo que faço. Sempre que saio de casa levo o dinheiro que tenho, contadinho. Anoto mentalmente tudo que gasto, e quando volto guardo direitinho, junto com os documentos, numa caixinha que tenho, na
primeira gaveta da cômoda, à esquerda. Tenho um resíduo de visão, e sei distinguir o valor das cédulas. Das moedinhas, não.
O comissário e o escrivão riram, comentando que dinheiro até cego conhece. Ariosto continuou.
- No domingo eu tinha uma nota de cinqüenta reais. Fui, com minha irmã, meu cunhado e meus sobrinhos, um menino de oito anos e uma menina de seis anos a uma macarronada provida pela paróquia do nosso bairro. Moro com eles, num quartinho que eles construíram nos fundos. Levei também uma filha que tenho com a ex-mulher. Ela tem dezesseis anos. Minha irmã e meu cunhado já tinham convite, as crianças não pagam. Comprei convites para mim e para a minha filha. Cada um custa cinco reais. Deram o troco em duas notas de dez, quatro de cinco, uma de dois e uma de um real. Comprei seis refrigerantes, a dois reais cada. Voltei para casa com vinte e oito reais.
Aceitou um cafezinho que lhe ofereceram para acalmá-lo. O acusado, mudo e trêmulo, fez um gesto com as mãos, recusando. Nem parecia aquele cara tagarela do ônibus.
- Na segunda-feira eu não saí de casa - continuou Ariosto contando.
- Na terça-feira fui a um curso de adaptação para deficientes visuais que freqüento às terças e
quintas-feiras. Levei os vinte oito reais e comprei uma rifa de cinco reais para a instituição. Ontem não saí de casa, não gastei nada. Hoje, quinta-feira, eu só tinha que ter os vinte e três reais que falei.
O suspeito foi interrogado. Chamava-se Warley, tinha vinte e oito anos, era casado, tinha cinco filhas, todas meninas, morava numa favela e estava desempregado. Levaram-no a uma sala especial, tiraram-lhe toda roupa e examinaram detidamente, até suas partes íntimas, e nada acharam. O rapaz não tinha um centavo. Trazia apenas seu RG e uma carteira profissional, sem anotação de emprego nos últimos oito meses. Anteriormente, porém, trabalhara como ajudante em uma obra. Não tinha ficha na Polícia.
- Sinto muito, seu Ariosto, mas quase nada podemos fazer - disse o comissário. - Mandarei inspecionar o ônibus na garagem, mas dificilmente acharemos o dinheiro ou alguma coisa que prove o roubo. O senhor, seu Warley, está dispensado por enquanto. Pode ir embora, mas não se ausente de casa por mais de vinte e quatro horas, pelo menos nos próximos três meses. O senhor pode ser intimado a qualquer momento.
Ariosto despediu-se cordialmente de todos, agradecendo pela colaboração.
No fundo, porém, lamentava a inépcia da Polícia, incompetente para resolver um caso tão simples. Não lamentava a quantia perdida, pois quase não precisava de dinheiro. O que doía era ter sido lesado. Não havia tempo, nem ele tinha disposição para ir ao curso naquele dia. Voltou para casa.
Ao chegar, guardou religiosamente os documentos na caixinha de plástico branca, na primeira gaveta, à esquerda da cômoda. Ao olhar para o fundo da tal caixinha, la estava o dinheiro, dobradinho, como deixara na terça-feira. Uma nota de dez, duas de cinco, uma de dois e uma de um real.

Sonhos

Eu já fui um astronauta, fui piloto de avião, fui o bom do bang-bang,
fui índio e fui vilão, fui herói de muitas guerras, fui perigoso espião.

Eu fui tudo que quis ser
da maneira que gostava,
pois eu era uma criança
e pela vida sonhava,
que era tudo que eu sonhava, ser gente grande.
Tinha pressa, muita pressa, mas o tempo não passava.

Agora meu tempo passa,
corre que ninguém alcança.
De repente fiquei velho,
criei banha, criei pança,
e meus sonhos de aventura
só ficaram na lembrança.
Só tenho um sonho impossível,
é voltar a ser criança.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Macunaíma 2010, candidato certo

Tendo em vista o resultado das eleições municipais em todo país, acho que tenho o candidato para a sucessão presidencial. É Macunaíma, o herói imortal de Mário de Andrade. Com ele não haverá problemas étnicos e raciais, pois ele é ao mesmo tempo branco, negro e índio. Adapta-se a qualquer situação e tem uma qualidade primordial: não tem nenhum caráter. É um ícone da política brasileira dos nossos dias.
Antes que alguém me encoste no muro, esclareço que não me refiro especificamente a Guarulhos. Aqui, apesar da baixaria da campanha (que já faz parte do jogo) e da gastança com panfletagem e carros de som (que parece ser inevitável) dos dois finalistas, pelo menos a campanha desenvolveu-se entre os dois grandes partidos brasileiros, PT e PSDB. Venceu o primeiro, ponto para Lula. No resto do país, porém, nenhum deles teve grande performance.
Na maioria dos municípios a vantagem foi do PMDB. Ora (dirão os governistas), o partido faz parte da base de apoio, a vitória foi nossa. Os oposicionistas, porém, lembram que na maioria dos casos o PMDB encarou de frente e derrotou o PT.
Na capital paulista, a maior e mais importante cidade do país, o partido de Quércia ajudou a derrotar dona Marta, menina dos olhos de Lula. E ainda, o ex-governador afirmou que apoiará José Serra para a presidência e que é importante derrotar o PT. Qualquer que seja o presidente eleito, o partido estará no governo, usufruindo de suas benesses. Nesse quadro, quem melhor do que o herói andradeano para presidir a coisa?
Por falar em Marta, ela acusou Kassab de ter sido malufista, esquecendo-se que o partido de Maluf, o PP, faz parte da base aliada. Lula nem deveria tê-la apoiado no primeiro turno, pois havia dois candidatos governistas na disputa.
Há muita gente séria, principalmente historiadores, querendo mudar nossa História. A nação aguarda ampla reforma política e de costumes para colocar os políticos na linha e educar o eleitorado. Mas isso não é nada fácil, e o nosso candidato sem nenhum caráter resumiu sua opinião a respeito numa frase histórica: “Ai, que preguiça!”

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Muito faz quem não aborrece

No último sábado, dia 23, passei quase o dia inteiro na Casa dos Cordéis, ponto de Cultura situado no Anel Viário, Gopoúva. À tarde houve um sarau, e durante todo dia apareceram pessoas interessadas em conhecer o espaço. É muito agradável permanecer algumas horas naquele aprazível casarão dos Nader. Lá pelas tantas, porém, pouco antes do meio-dia, estacionou num dos canteiros um desses carros de propaganda e lá permaneceu algumas horas, fazendo um estardalhaço dos diabos. Cantarolava um desses jingles chatos que não primam nem pela qualidade poética nem pelo valor musical. Depois aparecia a fala de um cara se apresentando como candidato a vereador e prometendo lutar pela população do bairro. Esportes, saneamento básico, melhor transporte, escolas, saúde, educação e outros lugares comuns eram repetidos pelo candidato, sem o menor esforço de imaginação.
Depois, a mesma voz, usando agora a terceira pessoa, repetia o nome do candidato e citava, seguidamente, uma dezena de milhar. Depois começava tudo de novo, depois outra vez, depois novamente, sem se incomodar com o ouvido de quem, por acaso, passasse por ali. Trabalhadores do Saae que executavam um serviço no local começaram a fazer piadas sobre o tal candidato.
Já tenho meu candidato a prefeito. Ainda não sei em quem votarei para vereador. E não é por falta de opção, como dizem os pessimistas. Ao contrário, conheço pelo menos uma dezena de pessoas sérias e decentes nos mais diversos partidos políticos, nos quais eu sei que meu voto não seria perdido, embora não espere deles nenhum milagre.
Uma coisa é certa: nesse tal candidato (está me dando comichão de falar seu nome) jamais votaria, em hipótese alguma. E tenho a impressão que todas as pessoas que permaneceram no local por algum tempo terão a mesma decisão. O tal candidato parece-me que fez papel de bobo, gastando tempo e dinheiro para deixar o povo bronqueado com ele.
Um amigo meu disse que não vota em candidato que faz barulho pela rua. Talvez ele exagere, pois de alguma forma os candidatos precisam divulgar sua disposição. Um pouquinho de inteligência, porém, não faz mal a ninguém.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Trocando os pés pelo traseiro

Dia desses, eu estava num ponto de ônibus, esperando por alguém. Era um desses pontos de parada completos, instalados por alguma administração pública, não me lembro quando, com banco e tudo mais. E estava intacto. Isso porque grande parte desses pontos já foram depredados por vândalos, essa praga dos dias de hoje. São talvez uma parte mínima da população, se divertem em fazer o mal e causam estragos para toda a gente. Depois, critica-se as administrações públicas pelos grandes problemas urbanos, causados por esses animais não-civilizados.
Ao meu lado, havia um garotão, aparentando uns vinte anos, bem vesitdo, de roupa esportiva, não tendo nada que lembrasse um animal. So que, em vez ´de sentar como as pessoas sensatas fazem, estava com o traseiro no encosto e os pés no lugar onde se costuma colocar a parte mais caluda do corpo. Tive ímpeto de perguntar-lhe porque fazia isso, e como ele se sentava em sua casa, à mesa das refeições. Me contive, para evitar uma resposta atravessada e para não parecer um velho rabujento. Esse jeito de sentar-se é uma das manias entre jovens e adolescentes de ambos os sexos, e até com alguns adultos. Será que essa gente não sabe qual é o lugar dos pés e qual é o lugar do traseiro. Talvez a alegação é que os outros fazem isso e eles têm medo de sujar sua calça. Mas de onde partiu essa mania? É a velha história da galinha e dos ovos: quem nasceu primeiro?
O piso do ponto é mais elevado do que o da calçada normal, outra boa iniciativa da administração municipal, para que as pessoas notadamente idosos e doentes, não tenham que fazer muito esforço para embarcar. mas não há um só motorista que encoste seu veículo nesse piso. As pessoas têm que descer até o nível da rua e depois levantar as pernas para levantar. Aí parece uma condição corporativa. Por que será que acontecem essas coisas?
Cidadania é a palavra da moda. É explicada nas escolas, em campanhas educativas e aborda uma série de coisas particulares que prejudicam a todos. Jogar lixo no chão, jogar ponta de cigarro em qualquer lugar, sujar rios e córregos, pixar muros e paredes, enfim, uma série de coisas que todo mundo já sabe que não deve fazer. Mas essa dos pontos de ônibus parece que ainda não foi abordada por ninguém.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Uma roupa cara que não cai bem

Que me perdoe a alma de Ulisses Guimarães, um raro estadista num país de tantos politiqueiros. Mas a sua obra-prima, a Constituição Cidadã, que ele alinhavou com tanto esmero, ficou bonita, bem costurada mas não cai bem no corpo (e na alma) do cliente, ou seja, do Brasil. Não quero com isso diminuir o país onde nasci, em que vivo e ao qual quero bem, mas somos latino-americanos e mestiços, não escandinavos. Não que sejamos piores que os suecos, dinamarqueses e noruegueses. Em alguns pontos, somos até melhores do que eles, pois somos alegres, não temos racismo nem preconceito contra imigrantes. Em compensação, somos rebeldes, indisciplinados, folgados, loucos para dar um jeitinho e levar vantagem em tudo. Isso pode ser um defeito ou uma qualidade, dependendo do ângulo que se olhe.
A Constituição de 1988 seria ótima para povos mais organizados e disciplinados. Para países de Primeiro Mundo, se considerarmos essa classificação em termos de cultura, educação e civilização, e não de poderio bélico e econômico, como os Estados Unidos. Depois de vinte anos de jejum, a população pensante do país estava sequiosa de cidadania, de direitos humanos e outros direitos. os constituintes capricharam e erraram na dose. O resultado é que temos direitos demais, principalmente para os humanos que não são direitos. O grosso da população, coitado, não tem nem direito de ficar sozinho na porta de sua casa, ou de ir até a esquina sem medo de ser assaltado. Políticos e empresários corruptos, criminosos organizados ou não, de colarinho branco ou sem colarinho, conhecem de cor e salteado todas as leis e sabem aproveitá-las para se livrar do castigo merecido. Tem-se a triste impressão que a nata da inteligência brasileira está entre corruptos e bandidos.
Um exemplo típico dessa hemorragia de “direitos humanos” (e bota aspas nisso), é o caso recente de um perigoso bandido que teve sua sentença de prisão anulada e foi libertado porque apresentou-se ao julgamento com as mão algemadas, o que contraria o sensível coraçãozinho dos nossos juristas. Não acredito que a Justiça esteja deliberadamente querendo defender bandidos e corruptos. A única explicação para isso, é que além de cega, a coitadinha é burra.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Como nossos edis gastam seu latim

A Câmara Municipal aprovou nesses últimos dias dois projetos de lei visando a alterar o brasão do município, que foi criado em 1932 pelo major Ariovaldo Panades, interventor federal em Guarulhos, imposto pela ditadura de Vargas.
Nessa época, a Câmara Municipal estava fechada e o projeto só foi sancionado em 7 de setembro de 1971. Em 1991, sofreu algumas alterações, propostas pelo bacharel Sílvio Orique Fragoso, diretor de Cultura do município na gestão do prefeito Paschoal Thomeu.
A primeira emenda é do presidente da Casa, Paulo Carvalho, do PR, e propõe a inclusão de mais duas figuras no brasão, que já tem um índio e um português, primeiros habitantes do aldeamento de Nossa Senhora da Conceição de Guarulhos: quer que seja incluído um negro e uma mulher.
O segundo é de Adilson Valente, do PC do B, e quer que o dístico em latim "Vere Pavlistarvm Sangvis Mevs" (em latim o v substitui o u), que significa "Meu Sangue é Verdadeiramente Paulista", seja traduzido para o português. Essa proposta foi rebatida pela Academia Guarulhense de Letras, foro indicado para essas questões.
Os acadêmicos Darci Pannochia, Plínio Tomaz e Ari Badini já se manifestaram e esperam que o prefeito Elói Pietá, professor de História, vete o projeto. O vereador entende que Pavlistarvm significa paulistano, mas Baddini lembra que na época da fundação de Guarulhos não existia o Estado de São Paulo.
Paulista é o nome que se dava aos bandeirantes que moravam em São Paulo de Piratininga, que não era capital de coisa alguma, e não existia a palavra paulistano.
O primeiro projeto passou sem maior celeuma, mas eu, que não entendo de latim e nem de heráldica, acho esquisito, não menosprezando os negros nem as mulheres. Mas será que cabe tanta gente no brasão?
O mais fácil seria colocar-se uma mulher negra, representando a etnia e o sexo esquecido. Se colocarem uma mulher branca terão que colocar também uma mulher negra e uma índia e talvez casais de japoneses, árabes e de outros povos que formam o nossa raça. Mas afinal, isso é um brasão ou uma lotação?

A divina novela por linhas tortas

Na minha opinião, um dos personagens mais marcantes da teledramaturgia brasileira é Sassá Mutema, da novela "O Salvador da Pátria", de Dias Gomes, na TV Globo. É interpretado pelo grande ator Lima Duarte, especialista nesse tipo de papel.
Protótipo do matuto mineiro, da região mais seca e pobre do estado, é analfabeto e ingênuo, mas dono de uma grande filosofia, aprendida em sua vida difícil, provocada mais pelos políticos corruptos de sua região do que pela natureza. Uma professora abnegada ensina-o a ler e a escrever, dá-lhe noções de cidadania e ele se torna líder de sua gente e acaba se elegendo prefeito. O poder sobe-lhe à cabeça, envolve-se com traficantes e faz mil e uma trapalhadas.A vida às vezes imita a arte, mas de forma imperfeita.
No Brasil de hoje, na vida real, temos um exemplo disso. Um cidadão nascido no paupérrimo sertão de Pernambuco imigrou para São Paulo, exerceu várias profissões humildes, empregou-se numa grande metalúrgica e se transformou num grande líder sindical. Ao lado de destacados membros da intelectualidade nacional, teve papel preponderante na redemocratização do país.Fundou um partido político, meteram-lhe na cabeça que deveria ser presidente da República e ele gostou da idéia. Não quis começar por baixo, aprendendo aos poucos a cozinhar esse indigesto sarapatel que é a política. Tinha pressa de salvar a pátria e acabou se elegendo e reelegendo.
Não diria que se envolveu com o tráfico, mas foi envolvido pelos trezentos picaretas que há décadas sugam o Brasil, imunes a qualquer transformação política. Teve de fazer o jogo deles e fazer-lhes muitos agrados às custas da pátria. Esqueceu-se de seus propósitos, mas não esqueceu o discurso. Sente-se realizado à luz dos holofotes e com os índices do Ibope, que lhe dão a doce ilusão de que alguma coisa está dando certo.
Novelas sempre têm final feliz. Sassá Mutema livrou-se dos seus problemas, regenerou-se e conseguiu desempenhar o papel de salvador da pátria. Pena que a História não é escrita por Dias Gomes.

A mão que faz e toca uma viola

Saraus lítero-musicais estão acontecendo em várias partes de São Paulo, numa verdadeira reação contra o que parece ser a robotização do ser humano nesta era tecnológica. Poetas, músicos e cantadores desconhecidos surgem a todo momento, mostrando que a arte está viva é é essencial neste planeta.
Guarulhos pode ter sido a pioneira neste trabalho, pois há quase quarenta anos acontece, mensalmente, o Recital Aberto de Poesia, na biblioteca Monteiro Lobato. Hoje, acontecem também saraus mensais no IPC, na Casa dos Cordéis e no Johrei, da Igreja Messiânica Mundial de Guarulhos, além de outros eventuais e esporádicos, em templos e associações diversas. Nesses eventos, atualmente, há mais músicos do que poetas.
José Barbosa da Silva, ou simplesmente Barbosa, é uma das figuras indispensáveis nesse reduto. Ele executa no violão peças clássicas do cancioneiro popular brasileiro e internacional e, na viola, o melhor da música regional daqui do sudeste, também chamada música caipira. Nascido em 1948, em Tupi Paulista, na região da Alta Paulista, perto de Dracena, veio para Guarulhos em1980, estudou violão clássico e harmônica, e aprendeu sozinho a tocar viola, influência da gente do interior.
Marceneiro de profissão, trabalhou em importantes fábricas de móveis de estilo. Mas, um dia, decidiu ser seu próprio patrão e fazer o que mais gosta. Agora, fabrica artesanalmente, em sua casa, violas e violões, que levam o selo Barbosa, e tem uma boa clientela de músicos caprichosos, que gostam de ter seu instrumento ao seu gosto.
Existem vários fabricantes pequenos de instrumentos musicais, em contraste com as grandes indústrias internacionais. Estes diferem daqueles pela forma caprichosa com que fazem seus instrumentos, ao gosto do freguês exigente, na acústica e na aparência. Quem produz instrumentos de corda é chamado de luthier.
Barbosinha afirma que faz cerca de quatro a cinco instrumentos por mês e tem como principal cliente a Orquestra Paulistana de Violas. Ele está preparando uma palestra musicada, que realizará brevemente na Casa dos Cordéis.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Reza profana para um homem bom

Hoje vou contar a história de um homem bom. Bom demais para ser verdade. Um homem que acreditava na igualdade entre as pessoas, se revoltava contra as injustiças e vivia todas essas coisas que os poetas, os filósofos e os políticos usam em seus discursos. Realmente não gostava de dinheiro. Era funcionário público federal concursado, ganhava bem, e se desgostava com isso. Ao receber o pagamento, ficava pensando naqueles que trabalham muito e ganham muito. Ao receber uma promoção, ficou chateado, e não aceitou o cargo que lhe ofereceram numa cidadezinha do interior, com a qual nós, seus filhos, sonhávamos acordados. O Estado lhe daria uma casa, e ele não achava isso justo.
Era um homem sisudo, as vezes rabujento, porque gostava das coisas certas. Ficava mal-humorado com freqüência, por qualquer coisa que o revoltasse, e quando chegava em casa de cara fechada, acabava-se a brincadeira das crianças. Eu perdia a inspiração para contar histórias a mim mesmo, uma mania que herdei dele.
Confesso que as vezes tinha medo dele, as vezes me revoltava, embora, felizmente, guardasse para mim a revolta. Nunca fui mal-criado, e isso salva a minha consciência. Um dia fui embora de casa e, então, parece que a minha amizade com ele se solidificou. Nos últimos dias de sua vida, esclerosado, preso a uma cama de hospital, esperava que eu, como jornalista, fosse libertá-lo. E eu, doce mentiroso, prometia que sim. Dava-lhe cigarros, escondido de minha mãe, severa guardiã de sua saúde. Se não havia recuperação, porque privá-lo do prazer? Não sei se errei, mas foi uma tentativa de generosidade da minha parte que espero que me compense pelas vezes em que me aborreci com ele.
Não sou religioso mas creio nas coisas boas que todas religiões têm. Não sei, se ao morrer, nossas almas descansam eternamente na luz ou nas trevas, conforme nossa vida pregressa, como querem os católicos; ou se voltam para nova vida, como querem os espíritas. Aonde quer que ele esteja, porém, espero que entenda minha admiração por ele, e me perdoe por não tê-lo compreendido.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Um matuto urbano e o seu paletó

No verão de 1978, eu estava com meu amigo Nício Pinhal de Souza tomando cerveja na padaria Símbolo, que ficava na esquina rua Dom Pedro II com a Padre Celestino. Estava com camiseta de malha, bermudas e chinelos de dedo. Na época eu podia usar chinelos de dedo, porque ainda tinha o dedão do pé direito. Cerveja já não podia tomar, pois o diabetes é meu velho companheiro de jornada. Mas eu não dava importância a ele, e bebia. Eis senão quando surgem à porta do estabelecimento dois ilustres amigos meus. Um era o doutor Assis de Almeida, advogado e empresário da cidade e o outro o saudoso jornalista Onofre Leite, que valorizou intensamente a imprensa de Guarulhos e do ABC. Eles estranharam a minha situação, e perguntaram se eu não ia tomar posse na Academia Guarulhense de Letras, da qual eu e o Onofre éramos co-fundadores, ao lado de outros valorosos espíritos da cidade e cuja solenidade dar-se-ia dali a poucas horas. Eu havia me esquecido totalmente.
O Onofre morava lá mesmo, na Padre Celestino, e foi para seu apartamento enfatiotear-se. O professor Assis, por sua vez, me levou à sua casa, onde tomei banho e ali mesmo deixei a bermuda, a camiseta, a sandália e até as cuecas. O advogado se encarregou de me deixar vestido para a ocasião, dando-me o terno, a camisa, a gravata, a cueca e um belo par de sapatos.O paletó era um pouco maior do que eu, mas para quem nunca se preocupou com a aparência, como é meu caso, estava ótimo. Logo, pegamos novamente o Onofre e nós três nos dirigimos à FIG, onde a solenidade já estava preparada e o nosso atraso já estava preocupando os demais confrades.
Todo acadêmico, ao ser escolhido, escolhe um escritor conhecido para ser seu patrono. Eu, desleixado como sempre, nem havia pensado no caso. Deram-me então o nome de Vicente de Carvalho. Sorte minha, pois esse patrono foi um grande poeta paulista, natural de Santos, autor de poemas românticos, falando do amor e do mar. Sua poesia é mais conhecida, porém, é uma infantil, denominada “A Fonte e a Flor”. Além disso, o poeta foi um grande empreendedor, e criou o serviço de lanchas entre Santos e Guarujá. O bairro onde as embarcações aportam, até hoje chama-se Vicente de Carvalho.
Após trinta anos, eis que serei presidente por dois anos desse móvel sodalício, que talvez eu não soube valorizar como deveria. Vou fazer o melhor que posso.

* O texto em destaque foi suprimido da publicação no Diário de Guarulhos, devido ao espaço limitado.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Como não resolver grandes problemas

Um assunto da moda, além dos crimes de colarinho branco e da nossa inflação, é a draconiana lei seca, que visa não impedir que pessoas embriagadas dirijam perigosamente, mas punir qualquer pessoa que tome qualquer coisa alcoólica. É verdade que os índices de morte por acidente diminuiram, e parece que a maioria da população aplaude essa puritana idéia. Sou obrigado a ir contra a maré porque sou contra a inustiça.
Se a lei for levada a sério, acabam-se as festas de confraternização, encontros culturais e muita vida inteligente que tem como endereço bares e botecos da cidade. Não se nega a meritória intenção do governo ao propor tal lei, mas sabe-se que de boas intenções o inferno está cheio.
Há muito tempo, pelos mesmos princípios puritanos, alguns municípios proibiram o funcionamento de bares após as 22 horas, sob alegação que muita violência acontece em alguns botecos pela noite a dentro. Isso lembra a surradíssima piada do sujeito cuja esposa o traía em seu sofá predileto da sala. Como vingança, ele vendeu o sofá.
Outra novidade é a lei da capital que proíbe a circulação de caminhões pelo centro da cidade. Nobilíssima intenção do prefeito, pois não os congestionamentos estrangulam a cidade como a poluição mata a população indefesa. Em contrapartida, porém, o transporte encarece e o custo de vida, que já anda nas alturas, sobe mais um pouco. E o rodízio de veículos? Penaliza quem tem um carrinho e precisa dele para trabalhar enquanto os mais ricos que possuem dois carros se viram à vontade.
Problemas existem sim, e não se sabe como resolvê-los. No caso do congestionamento do trânsito e da poluição pela queima de combustíveis todos sabem a solução: seria melhorar o transporte coletivo, principalmente ferroviário e metroviário, por tração elétrica. Isso resolveria também o problema de quem gosta de bebericar à noite e poderia voltar para casa sossegado, sem ter que dirigir. É claro que isso não pode ser feito da noite para o dia.
Qual a solução a curto prazo? Se algum candidato disser que a tem, não vote nele, que é mentiroso. O que não vale é arrumar soluções que não valem nada e que prejudicam uma parcela da população.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

A razão estará com o avestruz?

Para quem quiser fazer uma fezinha no mês de outubro, aqui vai uma dica: aposte no avestruz. É aquele bicho que come tudo, até pedras e, segundo a lenda, quando se vê em perigo, enfia a cabeça no primeiro buraco que encontra. Não vendo o perigo, pensa que está livre dele. Pois tem muita gente que também é assim, principalmente com relação à situação do país e do mundo.
É muito comum atualmente ouvir-se pessoas comentando que não vão votar em ninguém nas próximas eleições, pois todos os políticos são iguais. “Se ninguém votar, eles vão ver que estamos descontentes”, dizem. Eles quem? Para essas pessoas, o negócio é deixar a coisa andar, e permitir que os mesmos picaretas continuem a fazer suas picaretagens.
O pior é que não são pessoas despreparadas, sem instrução, alienadas. São professores, estudantes universitários, pessoas que têm posição política, escrevem e fazem discursos. Todos eles têm idéia do que seria melhor para o país e para o mundo, mas entendem que nenhum dos partidos existentes e nenhum dos políticos rima com suas idéias. Se eximem da responsabilidade que a democracia lhes oferece.
Eu discordo dessa posição, mas não encontro argumentos para dissuadir esses pessimistas da sua política de avestruz. Os políticos que estão na praça realmente, tanto na situação como na oposição, não se esforçam para merecer a confiança. Eles mudam freqüentemente, quando são oposição criticam algumas práticas, quando são governo, as praticam. É o caso do CSS, antiga CPMF, criada no governo PSDB-PFL e criticada pelo PT e partidos de esquerda; agora defendida pelo governo petista e criticada pela oposição.
Existem políticos honestos em todos os partidos, em ambos os grupos, situação e oposição. Este ano as eleições são municipais, mas em 2010 é que a coisa vai ser para valer, e a responsabilidade do eleitorado será maior ainda. Sabemos que mesmo os políticos mais sérios não consertarão o mundo, pois estão presos a compromissos de grupo, à ética partidária e interesses imediatos do próprio eleitorado. Numa democracia, cada povo tem o governo que merece. Mas se o povão está perdido, os formadores de opinião têm como criar nova mentalidade política e não esconder a cabeça como avestruz.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

O verde é nosso, vamos destruí-lo

“A Amazônia é nossa e ninguém tasca”, gritamos todos nós, brasileiros, no ardor patriótico só comparável às ocasiões da Copa do Mundo ou à perspectiva do Rio de Janeiro sediar as Olimpíadas de 2016. “Se ela é nossa, podemos fazer dela o que quisermos”, murmuram alguns, pensando nos lucros com a agropecuária e a mineralogia.
Não sei quantos são esses ecopófagos, mas sei que são pessoas importantes e poderosas, empresários e políticos ligados aos governos federal e estadual. São muito espertos, mas também meio burros. Afinal, o que lucrarão eles e o mundo se o planeta perder essa grande reserva ecológica e acabar ficando inabitável?
Há pouco tempo, iludiamo-nos pensando que a devastação da Amazônia estava diminuindo. Hoje sabemos que o que acontece é o contrário, a devastação continua ferozmente. Pensando cá com meus botões, porém, não vejo como comemorarmos, mesmo que estivesse mesmo diminuindo. Se alguém foi assaltado em cem reais na semana passada e em cinqüenta reais nesta semana, pode rejubilar-se por ter tido prejuízo menor agora?
O fato é que a Amazônia é objeto de cobiça internacional, e o descaso dos nossos governos pode até dar razão a esses cobiceiros. Tomara que Carlos Minc, que parece ser um homem de boa vontade, nos reabilite, embora Marina Silva, talvez uma das pessoas mais sérias desse governo, tenha fracassado.
É verdade que a Amazônia é um santuário ecológico, patrimônio de toda a humanidade e nenhum país pode ser egoísta de querer explorá-la. Devíamos preservar as florestas, os rios, os territórios indígenas e não exigir que a região faça parte do pólo produtivo. Não sei porque que devem existir estados como Acre e Rondônia, com governos estaduais, assembléias legislativas e toda a burocracia estatal. Não seria possível criarmos uma região, um território neutro?
Mas esse patrimônio deve ser administrado pelo Brasil, Bolívia, Venezuela, Colômbia, Equador e Guiana, protegido pelos exércitos desses países sem interferência alienígena, até porque os interesses internacionais acabam sendo interesse dos Estados Unidos. Alguém pode confiar nos americanos para preservar alguma coisa que preste?

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Vacas, alambiques e cachaça da boa

A Câmara dos Deputados aprovou uma lei regulando a venda de bêbidas alcoólicas nas rodovias brasileiras. Felizmente, teve o bom senso de permitir a venda dessas bebidas no perímetro urbano. Porque, com o crescimento das cidades, muitas rodovias acabam se transformando em avenidas. É o caso da estrada de Nazaré Paulista, em Guarulhos, da estrada de Itapecirica da Serra, no centro daquela cidade, e até da Raposo Tavares, em Cotia. Ainda bem que a avenida Guarulhos nunca foi denominada estrada, mesmo no tempo em que tinha essa característica.
No entanto, no tocante a penalizar motoristas que tenham ingerido alguma bebida, ela foi drástica. Há muitos anos, eu sou um total abstêmio. Não por religião, filosofia ou qualquer princípio, mas por causa do diabetes. Os médicos me proibem tudo que eu gosto, e eu obedeço, porque gosto da vida, apesar de tudo. Mas não vejo sentido em penalizar alguém que bebeu sua cervejinha, está perfeitamente sóbrio e dirige seu carro. Quem, alcoolizado ou sóbrio, por um descuido, mata, fere ou causa prejuízo em alguém, deve responder por crime culposo, mas não doloso. Uma pena não exagerada. Qualquer pessoa que não possa responder pelos seus atos deve ser impedida de circular, para sua própria segurança e a dos outros. O resto, me parece moralismo piegas de colégio de freiras.
Falando em estradas e em bebidas, volto à minha juventude e lembro-me de um caminho que conhecíamos como estrada do Sapopemba, que vai daquele bairro paulistano até Ribeirão Pires, no entroncamento com a rodovia que liga aquela cidade a Suzano. Passava por matas e propriedades rurais, e andei muito por lá, a pé ou de bicicleta.
Havia um sítio onde criavam vacas, fabricavam queijo e doces, havia um alambique e minha turma era freguesa de uma pinga composta com coco, a popular coquinho. na entrada, uma placa rústica anunciava a venda de vacas, pinga de alambique, queijo, manteiga e doces.
Quando veio a proibição da venda de bebida alcoólica em estradas, os proprietários se limitaram a riscar a palavra “pinga”, esquecendo, porém, a expressão “de alambique”, e a placa passou a anunciar a venda de “vacas de alambique”.

sábado, 24 de maio de 2008

Obsolescência ao alcance de todos

"Não sou negro, mulher, homossexual ou ex-presidiário - queixa-se meu amigo Euciel - A quem poderei apelar?" Ele tem razão. É branco, homem, heterossexual, nunca foi preso e é poeta. Além disso, está desempregado.
Euciel trabalhou em uma grande empresa multinacional, ganhava um salário até razoávelmas não tinha tempo de se dedicar à poesia e a outras coisas de que gostava. O trabalho que exercia tornou-se obsoleto graças (ou desgraças) ao avanço tecnológico e ele foi demitido. Agora tem tempo de sobra, mas enfrenta o duro problema da sobrevivência.
Na realidade, todos nós, independente de sexo, raça, opção sexual ou condição social já nos tornamos obsoletos. A humanidade se divide entre ricos ou pobres. Todos submissos ao fantasma da produtividade. Os pobres se dividem em empregados ou desempregados. Os desempregados são considerados inúteis e enfrentam esse problema de sobrevivência. Os empregados ganham salários, alguns até razoáveis, têm como sobreviver mas não têm como viver e gozar os prazeres menos materiais. São peças utilitárias e trabalham dez, doze ou dezoito horas por dia para não perder o emprego ou status. Segundo alguns, para garantir qualidade de vida, que significa ter uma boa casa e um bom carro, embora quase não fiquem em casa e só usem o carro para dirigirem-se ao trabalho.
Alguns conseguem se aposentar, e pensam que isso é um prêmio pelos seus anos de vida utilitária. Aos poucos, notam que é um castigo, pois o que ganham não dá para sobreviver dignamente e muito menos para viver inteligentemente. A aposentadoria é devorada pela inflação, um fantasma em que a propaganda oficial não acredita, mas que existe.
Euciel não sonha em ficar rico publicando livros de poesia, até porque as editoras só se preocupam com o lucro fácil dos best-sellers e dos livros de auto-ajuda. Quer apenas o direito de pensar, sobreviver e viver em seus pensamentos. Talvez, a única solução para ele ser protegido ou, pelo menos, cadastrado e reconhecido, seja incluir-se no item "espécies em extinção".

Romualdo e Juliana

-“Todo mundo homenageia Juliana na janela...” Pô, tenho que parar de cantar essa isso... Mas onde está essa porcaria? Ela tá sempre comigo, nunca largo, e agora? Ontem, cheguei em casa meio de fogo, meio cansado. Na hora de tirar a camisa deve ter caído por aí. Manhê, você viu os papéis que tavam no meu bolso ontem? Não viu, porcaria... Juliana... Ah não, agora ela é Joly, J-o-l-y... Essa porcaria desse y... E é paroxítona, Joly. Com acento no ó, só que não escreve esse acento... Eu tinha uma cachorra chamada Joli, e era oxítona... Romy e Joly, que frescura... Mas onde fui botar essa papelada... A foto dela, o telefone, meu RG, o diabo... Ah, Juliana, tudo poderia ter sido diferente, você não acha? Mas você virou Joly... O culpado de tudo foi o Roberto Carlos... Mas onde diabo eu pus essa porcaria? Vai ver minha mãe viu essa papelada toda jogada e resolveu arrumar encafuada num cantinho que nem ela sabe mais... Mania de mulher... Tava no meu bolso ontem à noite... “Você precisa estudar, Romy. Você é tão inteligente”... Ela faz faculdade e eu parei no primário... Vai ver que ela tem vergonha de andar comigo... Ela secretária executiva, eu ajudante geral... Fiz um samba pra ela. Ela disse que gostou... Eu sou metido a poeta... Tinha um jeitinho de samba bossa... “Fiz um verso de amor, todo cheio de prosa”...

Ô dia difícil de passar. Romualdo não podia se concentrar no trabalho nem deixar de pensar em Juliana. Os papéis perdidos eram como um amuleto que se carrega junto aos documentos.

O amor de Romualdo e Juliana era bonito, mas não podia dar certo. Que nem a história de Romeu e Julieta. Eram de tribos diferentes. Ela granfininha, ele caipira. Ele participando de passeatas contra ditadura militar. Ela só se preocupava com bailinhos, com luz estroboscópica, com as roupas da moda. Ele nacionalista, de caipira, de Nelson Gonçalves, de Chico Buarque. Ela de Elvis Presley e yê yê yê.

Mesmo assim, ele insistia. “Não quero mais esse negócio de você longe de mim”. E ela: “sou a garota papo firme que o Roberto falou”. Era isso que estragava tudo, Roberto pra cá, Roberto pra lá. Como se o Roberto Carlos fosse coleguinha dela, um rival seu. Aí ela deu de querer ser cantora jovem e adotou o nome de Joly, e o batizou de Romy...

- Recapitulemos. Eu saí da churrascaria por volta das onze e meia da noite, tomei a lotação, que realmente estava lotada, fui em pé. O cobrador pediu moedas para facilitar o troco, elas estavam no bolsinho da camisa. Lembro-me de ter tirado toda a papelada para tirar as malditas moedas, depois... Estava muito apertado, com certeza não consegui enfiar tudo no bolsinho de novo. É perdi na lotação... Paciência... O RG eu tiro uma segunda via, amanhã eu vou na delegacia fazer um BO, o resto era papelada sem importância... A letra do sambinha, que bobagem, a foto dela eu já deveria ter rasgado há muito tempo... Juliana Spacca, você saiu definitivamente da minha vida, não quero mais esse negócio de viver sofrendo assim.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Quem fez isso no pé da goiabeira?

Incêndio na fazenda do doutor Adauto Aroeira. O casarão totalmente destruído. Dizem que foi explosão num depósito de pólvora que ele mantinha. Segundo ele, para as festas populares que gostava de realizar. Segundo seus inimigos, para armar seus capangas. Numa coisa, todos concordam: o incêndio foi proposital. Adauto Aroeira tinha muitos inimigos.
A polícia investigou minuciosamente cada palmo da fazenda, cada pé de cana e cada rastro de vaca. E descobriram, ao pé de uma goiabeira, excrementos humanos. Exames periciais mostraram que a "obra" era bem anterior à data da explosão, mas nem por isso cessaram os comentários. Quem foi o vilão (ou justiceiro) que além de detonar o casarão ainda fez aquilo no pé da goiabeira? Seriam os sem-terra? Seria o atual prefeito, eleito sem o apoio do poderoso Adauto Aroeira? Seria o ex-prefeito, aliado incondicional dele, para culpar o atual?
O tempo passou e só "aquilo" no pé da goiabeira ainda alimenta os comentários e até alguma matéria no semanário ou na emissora de rádio locais.
Da explosão, quase ninguém mais comenta. Da existência ou não de um depósito de pólvora, e de qual seria sua utilidade, pouco se fala. Todos esqueceram-se também das denúncias e escândalos surgidas pouco antes do evento contra o poderoso Aroeira, que tem um genro deputado governista. Só o objeto esturricado e já inodoro encontrado ao pé da goiabeira é assunto do jornal, da rádio e dos bate-papos nos botecos da cidade.
Essa história parece meio besta, mas ninguém estranha um fato semelhante que vem ocorrendo no planalto central. Uma inexperiente ministra foi acusada de usar indevidamente seu cartão corporativo. Descobriu-se que outros ministros faziam o mesmo, e logo apareceu a idéia de uma CPI. Investiga-se só a gastança do atual presidente ou também do seu antecessor. Ei, apareceu um tal dossiê sobre o governo anterior. Dossiê ou relatório? Esquecida a gastança, a questão agora é saber quem vazou possíveis informações de um possível dossiê sobre possível gastança do ex-presidente. Quem fez aquilo no pé da goiabeira?

terça-feira, 20 de maio de 2008

Rio acima

Navegando rio acima

num barquinho de papel,

numa aventura cruel,

cuja esperança me anima,

eu vou atrás de uma rima

que rime com tudo, enfim

que existe dentro de mim

e nunca será olvidado.

Eu vou atrás do passado

da nascente de onde eu vim.

Como um novo bandeirante,

de costas para o oceano,

eu vou seguindo o meu plano,

meu viver itinerante

e nesse buscar constante,

nessa viagem sem fim,

quero ser um curumim,

um molequinho levado,

que hei de encontrar no passado,

na nascente de onde eu vim.

Cansado de modernagem,

quero voltar às origens

para fugir das vertigens,

para fugir da miragem,

e nessa louca viagem

eu quero fugir assim,

de um presente tão ruim,

de tanto sonho frustrado

e vou atrás do passado

da nascente de onde eu vim.

Nesta viagem de volta

quero rever as paisagens

que vi na outra passagem.

Paisagens talvez já mortas,

escritas por linhas tortas,

em garranchos de nanquim,

começando pelo fim

no meu errar acertado

eu vou atrás do passado

da nascente de onde eu vim.

Nas margens da minha vida

vi tantas flores se abrindo,

a natureza sorrindo,

paisagens hoje esquecidas,

que muita gente duvida

até da cor do jasmim,

do perfume do alecrim

e dos campos orvalhados,

mas vou atrás do passado,

da nascente de onde eu vim.

E mesmo assim, com coragem

vou levando meu barquinho,

pois aprendi a ser sozinho

e nem olhar para a margem.

Quando sentir as paragens

que pairam dentro de mim,

eu terei chegado enfim

ao meu país encantado,

terei chegado ao passado,

à nascente de onde eu vim.

Foi Melhor Assim

Quando te vi no bar, rindo e brincando
entre amigos, estranhos para mim
Me perdi nos teus olhos, fui ficando
sem rumo, sem princípio, meio ou fim.

Qual seria o teu nome, a tua idade
que pensarias tu caso soubesses
deste pobre poeta, da ansiedade
dos seus sonhos, desejos, suas preces?

Mais foi melhor assim
Tu foste embora, eu paguei minha conta, e sem demora
fui pra casa dormir nos braços teus.

Esses seus braços que eu só tive em sonhos
Pensamentos sublimes, bons, risonhos
Eu não te conheci, não houve adeus.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Ah Renato...

- Renato, você foi ingrato, me levou pro mato, me... – Flor Casta riu do versinho saca que aprendeu com a molecada. Não havia motivo para rir, mas ela aprendera que o riso é a única vingança contra os azares da vida. Ria quando seu pai, sem motivo, a espancava. Ria ao ouvir a mãe chorando num cantinho, sem coragem para tomar providência. Riu, cínica, quando ele a deflorou. Riu, nervosa, quando a mãe, num gesto inesperado de coragem, munida de um facão de cozinha, cortou a jugular do amante monstro. Riu, baixinho, quando a polícia a levou, e sorriu triste quando soube que ela suicidou no presídio feminino.

- Ah, Renato...!

Mas o que poderia fazer, chamar a polícia? Mas a polícia não se preocuparia com os problemas de uma mulher como ela. Além disso, nem sabia o nome do cara. Sabe, ele disse chamar-se Renato, mas poderia ser nome falso. Ela também dera o nome de Sônia. Tinha vergonha do nome que recebeu na pia bapismal.

- Vai ver que o filho da puta se chama Flor Casto – e riu novamente da própria piada.

Mas que era lindo, era. Com sua calça de jeans, a camiseta mais a exibir do que a esconder o tórax forte, e aquele sorriso divino. E falava bonito. Parecia um artista de novela. E se era bonito com a roupa, descascado então, vixe! No quarto, enquanto ele se despia, ela olhava extasiada.

E como fazia amor! Ela chegou a lembrar seus tempos de menina boba, quando sonhava com a lua-de-mel, pensou até ter encontrado o homem de sua vida. Após o orgasmo, enquanto se vestiam, chegou a sonhar com uma casinha branca, de janelas vermelhas, em um bairro bem longe dali.

De repente... Renato atirou-se sobre ela, jogou-a de volta à cama, e ela, assustada e sem saber o que estava acontecendo, sentiu um vulto perpassar, ouviu o barulho do criado-mudo sendo derrubado e as portas do quarto batendo. Quando teve coragem de abrir os olhos, notou que o crucifixo que encimava sua cama havia desaparecido. A gaveta do criado-mudo fora arrancada e nem sinal da bolsinha em que guardava as poucas economias, alguma bijuteria e o retrato da mãe.

- Ah, Renato...

No quarto, além da cama amarfanhada, do cheiro penetrante de esperma e perfume caro, mais nada.

Guilherme e Enock

- É, Enock, só nós dois aqui – queixava-se Guilherme ao amigo. – Só você me resta. Você é meu único amigo, sempre foi. Desculpe, mas só agora eu percebi.

Enock acompanhava as palavras do amigo, fitando seus olhos doces, sem nada falar.

- Ah, quantas aventuras eu vivi! Quantas viagens, quantas mulheres, quantos hotéis, dos mais luxuosos aos mais pés-de-chinelo, o que valia era a aventura. E os amigos, as cervejadas, as serenatas? Ah, mas tudo acabou. Todos me abandonaram.

Enock apenas encostava a perna no joelho do amigo, solidário com sua dor.

- Ainda bem que eu tenho você. Ainda bem que você nunca me abandona. Puxa, porque eu não te conheci antes... Ei, onde você vai?

Na rua, uma cadelinha dengosa no cio passava, atraindo atrás de si um séquito de admiradores, entre latidos , ganidos e mordidas. Com uma agilidade surpreendente para seus doze anos, Enock, o cachorro esgueirou pela porta semi-aberta, saltou sobre o portãozinho e foi juntar-se ao fã clube canino.