quinta-feira, 29 de novembro de 2007

O sonho acabou. O pesadelo não

Eu e a maioria dos jovens da minha geração, que nos considerávamos esclarecidos, éramos marxistas. Creio que a maioria de nós nunca teve saco para ler “O Capital”, mas empolgávamo-nos com o “Manifesto Comunista” e com a obra dos grandes escritores brasileiros e estrangeiros que, em prosa e versos, mostravam a miséria da desigualdade social e acenavam com a grande revolução que vinha da Rússia e já se espalhava pelo mundo.
Acreditávamos que, em breve, toda a humanidade seria comunista, e não haveria pobres nem ricos. Fingimos não acreditar nas mazelas daquele regime, ou achávamos que é um preço que a humanidade teria de pagar para viver uma era de paz e justiça.
O sonho acabou. O comunismo deu com os burros n'água e hoje só existe de forma caricatural. Mas o capitalismo vencedor assimilou todos os seus efeitos mais cruéis, como a perda dos direitos individuais e dos valores humanos e ditadura da produtividade. Para entender isso, não se precisa mais ler os escritores engajados que fizeram a nossa cabeça. Basta ouvir, todas as manhãs, o programa “Mundo Corporativo”, que Max Gehringer apresenta pela rádio CBN, atendendo consulta de jovens em busca de emprego, profissão e carreira. Geralmente, dá dicas de como se sair nas entrevistas.
Os entrevistadores dissecam a alma do candidato. Querem saber se têm namorado ou namorada e, no caso das mulheres, se têm ou se pretendem ter filhos. Perguntam se o cara tem religião, pratica esportes, como gasta suas horas vagas, quais são os sonhos mais secretos, se fumam, bebem, ou têm outros pequenos vícios e manias. Fazem questão também de boa aparência e desembaraço, uma maneira sutil de preconceito social e racial.
Para se conseguir uma boa colocação, não basta ter capacitação profissional, disposição para o trabalho e ser honesto. É obrigado a abdicar do menor traço da própria individualidade e se tornar uma peça da engrenagem. Quem não se enquadra vai engrossar a imensa legião de desempregados a ameaçar uma revolução sem quartel, sem ideologia e sem esperanças.

A modernidade ao alcance dos trouxas

Astrovaldo conseguiu uma pechincha: uma bicicleta (que ele chama de bike) Caloi, novinha em folha, reluzente, 21 marchas, com todos os etceteras, por mil reais à vista. Não tinha dinheiro, mas conseguiu emprestado para pagar quando pudesse. Afinal, uma de suas riquezas são os amigos que não fazem discurso de esquerda mas estão sempre dispostos a ajudarem-se mutuamente.

Fez bom negócio? Eu garanto que não. Para comprovar minha opinião, dou um pequeno detalhe que só eu sei, pois o personagem é meu: Astrovaldo é paraplégico.

Entenderam a parábola? É a história da modernidade, que os subdesenvolvidos, os pobres, os ignorantes cultivam com tanto carinho, sem entender que o que é bom para uns, não é bom para outros. Qualquer roupa é ótima, desde que caia bem no corpo de quem a usa. O progresso nos leva à automatização, à substituição de trabalhadores por robôs e outras coisinhas mais.

Isso é ótimo, por exemplo, para o Japão, onde há escassez de mão de obra e eles são obrigados a importar trabalhadores de outros países. É péssimo para a China, onde abunda a mão-de-obra barata, que é a verdadeira razão do grande poder econômico do país, embora ele se entitule comunista. É o mesmo caso do Brasil, embora os nossos botocudos, embevecidos com o maquinário da modernidade, teimam em fingir que são do primeiro mundo. O resultado está aí, no crescente aumento do desemprego, na mendicândia, no trabalho informal e na bandidagem. Índio não só quer apito, como quer celular, DVD, MP4 e outras modernagens.

A partir de domingo, entra em funcionamento a TV digital, com imagem mais perfeita e até a promessa de interação, num futuro próximo. Vai ser um barato e nem custará tão caro para a minoria endinheirada. A maioria cada vez mais pobre (apesar da propaganda oficial) terá que optar entre ficar babando, filar o programa dos amigos mais abastados ou sacrificar um pouco o minguado feijão de cada dia para adentrar na modernidade.

Bem, pelo menos até 2016, as emissoras continuaram transmitindo no sinal analógico. Até lá, gente de pobre ainda tem televisão.

sábado, 24 de novembro de 2007

O frango assado mais caro do mundo

Bissexto da Silva é um perdedor nato. Recebeu esse nome por ter nascido em 29 de fevereiro que, naquele ano, caiu numa sexta-feira. Nasceu prematuro, feinho e mirradinho, e seus pais nem pensaram em batizá-lo. Não acreditaram que ele sobreviveria nem torciam para que isso acontecesse. Também, tinham poucos amigos e não apareceu ninguém para se ofereceu para apadrinhar o esquisitinho. Mas foi se desenvolvendo, embora continuasse feinho, e mostrou que viera para ficar.
Já era taludinho e andava quando dona Faustina, uma velha seca, encrenqueira mas muito religiosa, resolveu fazer esse ato de caridade. Mas o batizado só podia ser na sexta-feira, único dia que ela tinha livre. A data caiu justamente num dia 13 de agosto. Como dona Faustina era solteirona, a dificuldade foi arranjar um padrinho. O único disponível foi Zé Cadorna, um bêbado que vivia nos bancos da praça da capela coçando o dedão do pé esquerdo com o calcanhar do pé direito. Naquela sexta-feira, estava tão borracho que o padre não queria realizar o ato religioso. Mas, a boa madrinha, aos berros e palavrões, convenceu-o. No dia seguinte, Zé Cadorna amanheceu morto no banco da praça. E uma semana depois, deu um troço na velha ela enviou sua alma ao bom Deus.
Assim, o novo cristão foi vivendo com os poucos cuidados dos pais. Dias pares, a mãe lhe batia, o pai vinha em seu socorro, e começava uma briga infernal. Dias ímpares, acontecia exatamente o contrário. O único refúgio do pobre menino era o Lixão da Carniça, onde passava horas sentado, acompanhando o desenho das nuvens e o vôo dos urubus. Aos doze anos, encontrou outro refúgio. Passava os dias perambulando pela Currutela da Jacutinga, povoado próximo ao sítio dos pais. Ajudava as donas de casa na feira, varria o bar do seu Pereira, e fazia limpeza na capela. Algumas vezes ganhava algum trocado, outras tinha que se contentar com uns cascudos. É que o coitado era desajeitado. Deixava cair a sacola da feita, espalhando arroz e batata pela rua, e quebrava copos e garrafas no boteco. Uma vez derrubou, com o cabo da vassoura, a imagem grande da padroeira do local, que se espatifou no chão da capela. Depois dessa, passou uma semana escondido no Lixão da Carniça rezando fervorosamente com medo do castigo de Deus e do corpulento padre Romano. Uma de suas manias era comprar bugigangas com o pouco dinheiro que recebia. Era freguês preferencial dos marreteiros que de vez em quando baixavam no vilarejo. Certa vez comprou, por cinco reais, um relógio sem mecanismo, que ostentava orgulhosamente no pulso. Quando alguém lhe perguntava a hora, ficava alguns segundos olhando o bobo, e fazia cara de mais bobo ainda: “Ué, meu relógio parou!” Mas para que diabo ele precisava saber as horas?
Gostava de freqüentar as quermesses da igreja. Quando tinha leilão, se aproximava do palanque e dava o primeiro lance. Depois deixava o pregão correr, e todos sabiam que não tinha dinheiro. Para o vilarejo, ele fazia parte do folclore.
A única pessoa que o tratava com brandura era dona Leocádia, considerada a mulher mais rica do lugar. Era casada com um ferroviário aposentado, tinha uma boa casa no largo da capela e cuidava muito bem do seu jardim. Dava esmolas à igreja, atendia todos os pobres que batessem em sua casa, e sempre dava pequenos serviços ao Bissexto, pagando-o bem mesmo quando o serviço era mal feito.
Naquele sábado, seu marido fizera uma pequena reforma na casa e ela encarregou o menino de jogar os entulhos na beira da rodovia. Ele levou o dia inteiro para essa tarefa, deixou cair muita sujeira pelo caminho e acabou quebrando o carrinho de mão que ela lhe emprestara. Mas recebeu a generosa paga de 50 reais.
À noite, orgulhoso e feliz, vestiu seu único terno, que fora de um filho de dona Leocádia quando criança, lustrou com casca de banana seu único par de sapatos, também presente da boa senhora, e foi para a quermesse. Se arregalou de tomar quentão, se empanturrou de comer pastel, e ainda comprou um ramalhete de flores, que ofereceu, garboso, a Josefina, menina bonitinha do pedaço. Ela se limitou a agradecer com um seco “obrigado”. Na hora do leilão, ainda tinha 29 reais. A primeira prenda oferecida foi um frango assado, enrolado com papel celofane em um prato de papelão e com um pouco de farinha. Como de costume, o menino deu o primeiro lance: três reais. Outro ofereceu cinco, e ele retrucou por sete. Dessa vez, parecia disposto a ir até o fim, e isso chamou a atenção das pessoas que estavam acostumadas com sua presença na brincadeira. Logo, o franguinho estava em vinte reais, o que chamou ainda mais a atenção do povão. Agora só estavam na disputa o Bissexto e o Tonico, filho do vereador do local, que gostava de aparecer e não tinha dó do dinheiro do pai. Tonico ofereceu 21 e Bissexto 25. Tonico ofereceu 26, e Bissexto berrou 27. Já desanimado, o filho do vereador ofereceu 28, o último dinheiro que lhe restava. Com a voz quase sumida, o moleque deu seu último e heróico lance: 29. Depois de muitos outros pregões e muito suspense, veio o tradicional “dou-lhe uma... dou-lhe duas... dou-lhe... três!!!”
– Este apetitoso prato vai para o nosso amiguinho! – berrou o leiloeiro, preparando-se para entregar o troféu ao menino pobre. Feliz, vitorioso pela primeira vez na vida, ele enfiou a mão no bolso do paletó e... ó surpresa! O bolso estava virado no avesso e nem sinal do dinheiro.
Até aquela data, os jacutinguenses orgulhavam-se de nunca ter acontecido o mais insignificante caso de furto no seu pequeno mas decente povoado.