sexta-feira, 3 de julho de 2009

O nó da gravata

Aldrovando estava eufórico. Floripes havia convidado para almoçar em sua casa no domingo, dia do seu aniversário. Ele tinha certa paixão secreta pela moça. Secretíssima, por sinal. O sapo coaxa para a lua, mas não sonha encontrá-la. Rapaz simples do interior, apenas com o quarto ano primário, no escritório era faxineiro, office-boy, consertador de tudo. Ela era recepcionista, moça de classe média, cursando faculdade. Mas se davam bem, ela gostava das histórias que ele contava, ele gostava de aprender coisas com ela. Fazia tudo que ela pedia. Comprava lanche, ia à locadora de vídeo, mesmo nas horas de folga, fora do seu serviço.

Passou a semana se preparando para a grande data. Na segunda-feira pediu a irmã que fosse levar ao tintureiro o terno e a camisa que só usara no dia do casamento dela. No sábado foi buscá-lo, e passou a tarde inteira lustrando o par de sapatos, deixando-os como espelho. Finalmente chegou o domingo. Tomou um banho demorado, fez a barba, escanhoou no capricho, cara lisa como uma criança. O cunhado emprestou uma gravata e ainda fez o laço, coisa que ele nunca aprendera a

fazer, e logo estava pronto, ansioso para sair. Tinha medo de chegar atrasado ao almoço. Na casa de seus pais, todos tinham de estar ao meio-dia em ponto sentados à mesa, sob pena de encarar a carranca da boa porém rigosa mãe.

Ao sair à rua, ouviu da vizinha a clássica pergunta. "Vai fazer exame de fezes?" Aldrovando riu, encarando a brincadeira como elogio. O ônibus demorou, como de costume. Quando chegou, veio apinhado. Entrou, ajeitando-se como pode, com medo de amarrotar a fatiota. Aos trancos e barrancos, chegou ao centro da cidade quando o relógio da praça marcava meio-dia e quinze. Apertou o passo e logo chegou ao endereço indicado. Era uma casa bonita que, aos seus olhos, pareceu uma mansão. Tocou a campainha, e apareceu uma senhora muito simpática.

-Boa tarde, eu sou um colega da Floripes.

-Ah, você é o Aldo! A Flô fala muito de você. Entre, ela saiu, mas não demora a voltar. Fique à vontade!

Foi conduzido à uma sala espaçosa, onde já se encontravam várias pessoas batendo papo e bebericando alguma coisa. Foi apresentado a todos, que o cumprimentaram, um a um. Sentou-se em uma poltrona, bebeu uma bebida que lhe ofereceram, não conhecia, mas gostou.

Mas não conseguiu entrar na conversa. Os assuntos eram estranhos para ele. No escritório, e no bairro onde morava, até que era tagarela, mas ali o máximo que conseguiu foi dar risada de tudo, para dar a impressão de que entendia alguma coisa.

Depois de alguns minutos, que para ele pareceram eternos, todos foram convidados para a sala de jantar. Floripes ainda não havia chegado. O almoço era uma suculenta macarronada, o que deixou Aldrovando preocupado. Ele gostava do prato, mas não podia comê-lo sem se lambuzar-se da cabeça aos pés. O jeito foi cortar, desajeitadamente, macarrão por macarrão, sem evitar de sujar o queixo e os primeiros fios de barba que apareciam. Tentou, disfarçadamente, limpá-los com a ponta da toalha.

-Ei, menino - disse a dona da casa - tem guardanapo no copo.

Continuar a comer foi um sacrifício para o rapaz. Além do vexame, o trabalho de cortar o macarrão, pedacinho por pedacinho tirava o prazer de comer. Nem isso, porém, impediu que respingasse molho na gola da camisa e na gravata. Felizmente os demais convivas pareceram não notar.

Após o almoço, um licor e o cafezinho, e todos voltaram à sala de estar. Nova tagarelice entre todos, e o mesmo silencio acabrunhado de Aldrovando. O aperitivo, o almoço e o licor deram uma sonolência, e veio o cochilo, que logo se transformou em pesado sono. Acordou, não sabe quanto tempo depois, babando na gravata. A sala estava vazia, na penumbra.

Levantou-se, meio cambaleante, e pensou em procurar a Floripes e a mãe para se despedir. Fora convidado para almoçar, e já almoçara. A mãe da moça explicou que ela chegara mas saíra novamente, que ele esperasse mais um minutinho. “Sabe, a idade dela, o aniversário, tantos

amigos, tanta correria.” Ele até poderia ficar para a noite, já estava escurecendo. Esperasse para cortar o bolo. A contragosto, mas sem jeito para recusar, ficou. Foi conduzido à varanda, onde as pessoas tagarelavam e se serviam de doces, salgados e bebidinhas servidas por garçons contratados. Sempre silencioso, ainda meio acanhado, ele também ia pegando cálices e coisas mais que passavam, sem se importar com o conteúdo. Floripes apareceu, em meio de um bando de amigos de ambos os sexos, e cumprimentou-o, com um “oi” que ele respondeu com outro “oi”. Não teve tempo de conversar muito com ele. A noite ia passando, comes e bebes rolando, e uma música barulhenta no ar. O rapaz só tinha vontade de ir logo embora. Pensou em criar coragem, romper a multidão, abraçar a aniversariante, dar-lhe um beijo, dar-lhe os parabéns e ir embora, sem mais

cerimônia. Era só aparecer uma oportunidade. A oportunidade chegou, finalmente. Ela passou perto, ele agarrou-a, tentou abraçá-la e beijá-la, mas foi tão desastrado que ambos caíram, levando junto o bolo que ia passando, levado por dois rapazes. Escândalo, gritaria e corre-corre.

- Você me mata de vergonha - gritou a moça, ruborizada, mal disfarçando a raiva.

A única saída foi a fuga. Saiu correndo, como se fosse perseguido por toda a horda de Satanás. A bonita noite que o esperava lá fora, com seu luar e seu frescor, não aplacaram sua ira e sua vergonha. Saiu resmungando, jurando que dessa noite em diante iria tratar a colega como uma estranha, que no escritório só faria seu trabalho, nada de favor a ninguém. Talvez não fosse trabalhar no dia seguinte, segunda-feira. Assim pensando chegou ao ponto, para perceber que o

o último ônibus acabara de sair. Só lhe restava fazer a pé os quatro quilômetros que o separavam de sua casa.

Começou a correr para chegar mais depressa e para desabafar a raiva e a vergonha. Logo cansou-se e passou a caminhar mais devagar, sempre resmungando. Após meia hora de caminhada, quando deixava para trás as últimas casas da área central e entrava por uma estradinha de terra, ouviu o ribombar de um trovão, e uma carga d'água desabou sobre ele. Em um segundo estava encharcado, de água por fora, de mágoa por dentro. Escorregou e caiu com o peito na lama. Antes de levantar-se, ainda sentado na lama, levantou os braços aos céus e bradou todos palavrões de que se lembrou, contra Deus, a chuva, e todos os aniversariantes do mundo. Ao tentar se levantar notou que perdera um dos seus sapatos. Engatinhando na lama, encontrou-o, quase dentro de um córrego que ladeava o caminho. Quando chegou em casa a chuva já tinha parado. A porta só estava encostada. Seu único desejo era arrancar aquela roupa, agora suja e molhada, mas que antes lhe dera tanta esperança, tomar um belo banho e cair na cama, encerrando assim um domingo de desengano. Só pode banhar-se da cintura para baixo. Dormiu com com a camisa encharcada. Não conseguiu desatar o nó da gravata.

Um comentário:

Helena de Tróia disse...

Tem dia que tudo dá errado... rs