quinta-feira, 1 de outubro de 2009
sexta-feira, 3 de julho de 2009
O nó da gravata
Passou a semana se preparando para a grande data. Na segunda-feira pediu a irmã que fosse levar ao tintureiro o terno e a camisa que só usara no dia do casamento dela. No sábado foi buscá-lo, e passou a tarde inteira lustrando o par de sapatos, deixando-os como espelho. Finalmente chegou o domingo. Tomou um banho demorado, fez a barba, escanhoou no capricho, cara lisa como uma criança. O cunhado emprestou uma gravata e ainda fez o laço, coisa que ele nunca aprendera a
fazer, e logo estava pronto, ansioso para sair. Tinha medo de chegar atrasado ao almoço. Na casa de seus pais, todos tinham de estar ao meio-dia em ponto sentados à mesa, sob pena de encarar a carranca da boa porém rigosa mãe.
Ao sair à rua, ouviu da vizinha a clássica pergunta. "Vai fazer exame de fezes?" Aldrovando riu, encarando a brincadeira como elogio. O ônibus demorou, como de costume. Quando chegou, veio apinhado. Entrou, ajeitando-se como pode, com medo de amarrotar a fatiota. Aos trancos e barrancos, chegou ao centro da cidade quando o relógio da praça marcava meio-dia e quinze. Apertou o passo e logo chegou ao endereço indicado. Era uma casa bonita que, aos seus olhos, pareceu uma mansão. Tocou a campainha, e apareceu uma senhora muito simpática.
-Boa tarde, eu sou um colega da Floripes.
-Ah, você é o Aldo! A Flô fala muito de você. Entre, ela saiu, mas não demora a voltar. Fique à vontade!
Foi conduzido à uma sala espaçosa, onde já se encontravam várias pessoas batendo papo e bebericando alguma coisa. Foi apresentado a todos, que o cumprimentaram, um a um. Sentou-se em uma poltrona, bebeu uma bebida que lhe ofereceram, não conhecia, mas gostou.
Mas não conseguiu entrar na conversa. Os assuntos eram estranhos para ele. No escritório, e no bairro onde morava, até que era tagarela, mas ali o máximo que conseguiu foi dar risada de tudo, para dar a impressão de que entendia alguma coisa.
Depois de alguns minutos, que para ele pareceram eternos, todos foram convidados para a sala de jantar. Floripes ainda não havia chegado. O almoço era uma suculenta macarronada, o que deixou Aldrovando preocupado. Ele gostava do prato, mas não podia comê-lo sem se lambuzar-se da cabeça aos pés. O jeito foi cortar, desajeitadamente, macarrão por macarrão, sem evitar de sujar o queixo e os primeiros fios de barba que apareciam. Tentou, disfarçadamente, limpá-los com a ponta da toalha.
-Ei, menino - disse a dona da casa - tem guardanapo no copo.
Continuar a comer foi um sacrifício para o rapaz. Além do vexame, o trabalho de cortar o macarrão, pedacinho por pedacinho tirava o prazer de comer. Nem isso, porém, impediu que respingasse molho na gola da camisa e na gravata. Felizmente os demais convivas pareceram não notar.
Após o almoço, um licor e o cafezinho, e todos voltaram à sala de estar. Nova tagarelice entre todos, e o mesmo silencio acabrunhado de Aldrovando. O aperitivo, o almoço e o licor deram uma sonolência, e veio o cochilo, que logo se transformou em pesado sono. Acordou, não sabe quanto tempo depois, babando na gravata. A sala estava vazia, na penumbra.
Levantou-se, meio cambaleante, e pensou em procurar a Floripes e a mãe para se despedir. Fora convidado para almoçar, e já almoçara. A mãe da moça explicou que ela chegara mas saíra novamente, que ele esperasse mais um minutinho. “Sabe, a idade dela, o aniversário, tantos
amigos, tanta correria.” Ele até poderia ficar para a noite, já estava escurecendo. Esperasse para cortar o bolo. A contragosto, mas sem jeito para recusar, ficou. Foi conduzido à varanda, onde as pessoas tagarelavam e se serviam de doces, salgados e bebidinhas servidas por garçons contratados. Sempre silencioso, ainda meio acanhado, ele também ia pegando cálices e coisas mais que passavam, sem se importar com o conteúdo. Floripes apareceu, em meio de um bando de amigos de ambos os sexos, e cumprimentou-o, com um “oi” que ele respondeu com outro “oi”. Não teve tempo de conversar muito com ele. A noite ia passando, comes e bebes rolando, e uma música barulhenta no ar. O rapaz só tinha vontade de ir logo embora. Pensou em criar coragem, romper a multidão, abraçar a aniversariante, dar-lhe um beijo, dar-lhe os parabéns e ir embora, sem mais
cerimônia. Era só aparecer uma oportunidade. A oportunidade chegou, finalmente. Ela passou perto, ele agarrou-a, tentou abraçá-la e beijá-la, mas foi tão desastrado que ambos caíram, levando junto o bolo que ia passando, levado por dois rapazes. Escândalo, gritaria e corre-corre.
- Você me mata de vergonha - gritou a moça, ruborizada, mal disfarçando a raiva.
A única saída foi a fuga. Saiu correndo, como se fosse perseguido por toda a horda de Satanás. A bonita noite que o esperava lá fora, com seu luar e seu frescor, não aplacaram sua ira e sua vergonha. Saiu resmungando, jurando que dessa noite em diante iria tratar a colega como uma estranha, que no escritório só faria seu trabalho, nada de favor a ninguém. Talvez não fosse trabalhar no dia seguinte, segunda-feira. Assim pensando chegou ao ponto, para perceber que o
o último ônibus acabara de sair. Só lhe restava fazer a pé os quatro quilômetros que o separavam de sua casa.
Começou a correr para chegar mais depressa e para desabafar a raiva e a vergonha. Logo cansou-se e passou a caminhar mais devagar, sempre resmungando. Após meia hora de caminhada, quando deixava para trás as últimas casas da área central e entrava por uma estradinha de terra, ouviu o ribombar de um trovão, e uma carga d'água desabou sobre ele. Em um segundo estava encharcado, de água por fora, de mágoa por dentro. Escorregou e caiu com o peito na lama. Antes de levantar-se, ainda sentado na lama, levantou os braços aos céus e bradou todos palavrões de que se lembrou, contra Deus, a chuva, e todos os aniversariantes do mundo. Ao tentar se levantar notou que perdera um dos seus sapatos. Engatinhando na lama, encontrou-o, quase dentro de um córrego que ladeava o caminho. Quando chegou em casa a chuva já tinha parado. A porta só estava encostada. Seu único desejo era arrancar aquela roupa, agora suja e molhada, mas que antes lhe dera tanta esperança, tomar um belo banho e cair na cama, encerrando assim um domingo de desengano. Só pode banhar-se da cintura para baixo. Dormiu com com a camisa encharcada. Não conseguiu desatar o nó da gravata.
sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009
Depois do suicídio
morrer...
Um pouco de razão ele tinha. Desde criança era tido como uma criança esperta e inteligente, com raciocínio rápido, com muitas idéias. Chegou a ganhar um concurso infantil de redação. Queria ser ator, escritor, e muitas coisas mais. Mas nunca chegou a definir exatamente o que queria. Participou de peças teatrais infantís e de grupos amadores adultos, recitava poesias de sua autoria em festinhas, e era muito elogiado. Mas tinha preguiça de estudar, não foi além da sexta
série. Queria fazer de tudo, mas nem pensava em se sujeitar a um emprego rotineiro, com chefe, horário e outras coisas chatas.
Há uma semana o tempo estava carrancudo. Chuvas fortes se intercalavam com garôa intermitente, ventos fortes açoitavam as pessoas e as coisas sem parar. Não saia mais de casa, estava enferrujando. Sem em´prego, sem dinheoiro, a despensa quase vazia, quase sem roupa, e ainda essa chuvinha chata. Tempo propício para um bom suicídio. Pecado? Se Deus se dá o direito de fazer um tempo desses, não tem moral para julgar ninguém.
Colocou a carta em cima da escrevaninha que servia também para as refeições (quando havia), e pôs ao lado todos os troféus e diplomas ganhos em concursos culturais, para que todos vissem que o mundo perderia um gênio. Depois rasgou ao meio a velha carteira profissional, sem nenhum emprego anotado, e jogou por cima. Botou para fora Frederico, o gato que costumava dormir na sua cama, e fechou bem a porta e a janela do quartinho. O bichano protestou, com miados resmungões, sem saber que eram as suas sete vidas que estavam sendo poupadas. Abriu as quatro bocas do fogão e deitou-se na cama, cobrindo-se com os dois cobertores que ainda tinha. Estava frio, e um homem que vai morrer tem direito a certo conforto.
Estava quase dormindo quando sentiu uma mão macia acariciando suas coxas e depois o pênis. Era Marlene Gata, a bela e gostosa morena que chegou a ser sua namorada, e depois se casou com seu melhor amigo, formado em Engenharia, com um bom emprego. Acariciou-a também, primeiro no rosto, depois no pesoço, ceios e... Quando se preparava para abaixar as mãos, a doida saltou da cama e fugiu pela janela. Saiu em sua perseguição, rua afora, mas perdeu-a de vista.
Quando deu pela coisa, já estava correndo, só de cuecas, rasgadas, em plena avenida Paulista. Mas em vez de carros correndo, o que viu eram tranquilas vacas pastando. Passou entre elas e começou a subir a ladeira Porto Geral, que se tornava cada vez mais longa e íngreme. Passou por vãrios amigos a quem emprestara dinheiro e nunca pagaram, e eles nem lhe deram atenção. Passou também por pessoas a quem devia dinheiro, que o olharam interrogativamente. Em certo momento viu, descendo a ladeira o dono da empresa que o demitira após seu primeiro
mês de trabalho, sem registrá-lo em carteira. Pensou em chutar-lhe a imensa barriga, mas não fez. Depois vinha descendo o dono da lanchonete que não fiava mais porque sua conta estava muito grande. Carregava uma bandeja cheia de petiscos. Catou uma coxinha e saiu correndo ladeira acima. Quando percebeu estava na porta do céu. Deus apareceu, carrancudo, perguntando o que fazia alí, naquela hora, só de cuecas.
Agarrou no colarinho do Todo Poderoso e gritou: "Porque Você me abandonou? Eu não mereço isso." Levou um empurrão e caiu do céu. Teria se esborrachado se não acordasse naquela hora.
Um sól forte mostrava sua luz pelas frestas da veneziana, tentando compensar tantos dias de chuva. Enfiou a mão debaixo do travesseiro e encontrou um maço de cigarros mata-rato, ainda com um cigarro dentro, todo amassado. Na cadeira que servia de criado-mudo havia uma caixa de fósforos, com um palito. Acendeu o cigarro, tossiu e percebeu um leve cheiro de gás. Lembrou-se da noite anterior, e admirou-se por ainda estar vivo, principalmente após ter acendido o cigarro. A casa deveria ter voado pelos ares.
Levantou-se preguiçosamente, deu uma olhada em torno, e viu que as quatro bocas do fogão estavam abertas, mas o gás havia acabado, talvez nos primeiros minutos da noite.
Jesus Trotsky, mais do que bom
O pai era marceneiro dos bons, com curso no Senai. Trabalhara sempre em uma boa empresa e ganhava um salário razoável. Era sindicalizado, mas nunca quis ocupar cargo de direção. A mãe era de prendas domésticas, das mais prendadas. Participava de Pastoral e fazia excelente trabalho social, em favor dos mais necessitados, servindo a Deus e aos homens.
O inocente foi crescendo e recebendo duas orientações diferentes, ambas, contudo, levando-o a caminhos parecidos. A mãe ensinou a ter amor e caridade, como ensinou seu xará, Jesus Cristo. O pai fê-lo entender que os homens e mulheres do mundo inteiro devem viver em paz e fraternidade. Ambos o ensinaram a repartir o pão. Ambos o ensinaram que os homens são todos irmãos, por Deus ou pela dialética.
Aprendeu e foi um bom menino e um homem de bem. Foi ainda mais longe. Jamais quis receber alguma coisa pelo bem que praticava. Acreditava que o bem se satisfaz por si próprio. Se fizesse o bem para ganhar o céu, se andasse direito para ser promovido no emprego, se espalhasse boas palavras para conduzir multidões, estaria trabalhando em causa própria.
O bem praticado em troca de alguma coisa não é bem. Fiel a esse pensamento, nunca teve uma religião, e nunca aderiu a qualquer ideologia ou partido político.
Assim viveu, como um santo ou um filósofo. Nunca teve nada, mas encheu o mundo de idéias e de filhos. As idéias, como todo pensamento generoso, foram esquecidas ou deturpadas. Os filhos cresceram e se multiplicaram em netos. Nenhum puxou ao pai ou ao avô. Todos foram criaturas normais e mais ou menos felizes, mais ou menos infelizes, contribuindo para que o mundo continuasse a girar na mesma órbita.
Como tudo que é mortal, Jesus Trotsky morreu, velho, pobre, mas realizado. Foi para o Inferno. Deus achou que tanto desapego era petulância.