Passou a semana se preparando para a grande data. Na segunda-feira pediu a irmã que fosse levar ao tintureiro o terno e a camisa que só usara no dia do casamento dela. No sábado foi buscá-lo, e passou a tarde inteira lustrando o par de sapatos, deixando-os como espelho. Finalmente chegou o domingo. Tomou um banho demorado, fez a barba, escanhoou no capricho, cara lisa como uma criança. O cunhado emprestou uma gravata e ainda fez o laço, coisa que ele nunca aprendera a
fazer, e logo estava pronto, ansioso para sair. Tinha medo de chegar atrasado ao almoço. Na casa de seus pais, todos tinham de estar ao meio-dia em ponto sentados à mesa, sob pena de encarar a carranca da boa porém rigosa mãe.
Ao sair à rua, ouviu da vizinha a clássica pergunta. "Vai fazer exame de fezes?" Aldrovando riu, encarando a brincadeira como elogio. O ônibus demorou, como de costume. Quando chegou, veio apinhado. Entrou, ajeitando-se como pode, com medo de amarrotar a fatiota. Aos trancos e barrancos, chegou ao centro da cidade quando o relógio da praça marcava meio-dia e quinze. Apertou o passo e logo chegou ao endereço indicado. Era uma casa bonita que, aos seus olhos, pareceu uma mansão. Tocou a campainha, e apareceu uma senhora muito simpática.
-Boa tarde, eu sou um colega da Floripes.
-Ah, você é o Aldo! A Flô fala muito de você. Entre, ela saiu, mas não demora a voltar. Fique à vontade!
Foi conduzido à uma sala espaçosa, onde já se encontravam várias pessoas batendo papo e bebericando alguma coisa. Foi apresentado a todos, que o cumprimentaram, um a um. Sentou-se em uma poltrona, bebeu uma bebida que lhe ofereceram, não conhecia, mas gostou.
Mas não conseguiu entrar na conversa. Os assuntos eram estranhos para ele. No escritório, e no bairro onde morava, até que era tagarela, mas ali o máximo que conseguiu foi dar risada de tudo, para dar a impressão de que entendia alguma coisa.
Depois de alguns minutos, que para ele pareceram eternos, todos foram convidados para a sala de jantar. Floripes ainda não havia chegado. O almoço era uma suculenta macarronada, o que deixou Aldrovando preocupado. Ele gostava do prato, mas não podia comê-lo sem se lambuzar-se da cabeça aos pés. O jeito foi cortar, desajeitadamente, macarrão por macarrão, sem evitar de sujar o queixo e os primeiros fios de barba que apareciam. Tentou, disfarçadamente, limpá-los com a ponta da toalha.
-Ei, menino - disse a dona da casa - tem guardanapo no copo.
Continuar a comer foi um sacrifício para o rapaz. Além do vexame, o trabalho de cortar o macarrão, pedacinho por pedacinho tirava o prazer de comer. Nem isso, porém, impediu que respingasse molho na gola da camisa e na gravata. Felizmente os demais convivas pareceram não notar.
Após o almoço, um licor e o cafezinho, e todos voltaram à sala de estar. Nova tagarelice entre todos, e o mesmo silencio acabrunhado de Aldrovando. O aperitivo, o almoço e o licor deram uma sonolência, e veio o cochilo, que logo se transformou em pesado sono. Acordou, não sabe quanto tempo depois, babando na gravata. A sala estava vazia, na penumbra.
Levantou-se, meio cambaleante, e pensou em procurar a Floripes e a mãe para se despedir. Fora convidado para almoçar, e já almoçara. A mãe da moça explicou que ela chegara mas saíra novamente, que ele esperasse mais um minutinho. “Sabe, a idade dela, o aniversário, tantos
amigos, tanta correria.” Ele até poderia ficar para a noite, já estava escurecendo. Esperasse para cortar o bolo. A contragosto, mas sem jeito para recusar, ficou. Foi conduzido à varanda, onde as pessoas tagarelavam e se serviam de doces, salgados e bebidinhas servidas por garçons contratados. Sempre silencioso, ainda meio acanhado, ele também ia pegando cálices e coisas mais que passavam, sem se importar com o conteúdo. Floripes apareceu, em meio de um bando de amigos de ambos os sexos, e cumprimentou-o, com um “oi” que ele respondeu com outro “oi”. Não teve tempo de conversar muito com ele. A noite ia passando, comes e bebes rolando, e uma música barulhenta no ar. O rapaz só tinha vontade de ir logo embora. Pensou em criar coragem, romper a multidão, abraçar a aniversariante, dar-lhe um beijo, dar-lhe os parabéns e ir embora, sem mais
cerimônia. Era só aparecer uma oportunidade. A oportunidade chegou, finalmente. Ela passou perto, ele agarrou-a, tentou abraçá-la e beijá-la, mas foi tão desastrado que ambos caíram, levando junto o bolo que ia passando, levado por dois rapazes. Escândalo, gritaria e corre-corre.
- Você me mata de vergonha - gritou a moça, ruborizada, mal disfarçando a raiva.
A única saída foi a fuga. Saiu correndo, como se fosse perseguido por toda a horda de Satanás. A bonita noite que o esperava lá fora, com seu luar e seu frescor, não aplacaram sua ira e sua vergonha. Saiu resmungando, jurando que dessa noite em diante iria tratar a colega como uma estranha, que no escritório só faria seu trabalho, nada de favor a ninguém. Talvez não fosse trabalhar no dia seguinte, segunda-feira. Assim pensando chegou ao ponto, para perceber que o
o último ônibus acabara de sair. Só lhe restava fazer a pé os quatro quilômetros que o separavam de sua casa.
Começou a correr para chegar mais depressa e para desabafar a raiva e a vergonha. Logo cansou-se e passou a caminhar mais devagar, sempre resmungando. Após meia hora de caminhada, quando deixava para trás as últimas casas da área central e entrava por uma estradinha de terra, ouviu o ribombar de um trovão, e uma carga d'água desabou sobre ele. Em um segundo estava encharcado, de água por fora, de mágoa por dentro. Escorregou e caiu com o peito na lama. Antes de levantar-se, ainda sentado na lama, levantou os braços aos céus e bradou todos palavrões de que se lembrou, contra Deus, a chuva, e todos os aniversariantes do mundo. Ao tentar se levantar notou que perdera um dos seus sapatos. Engatinhando na lama, encontrou-o, quase dentro de um córrego que ladeava o caminho. Quando chegou em casa a chuva já tinha parado. A porta só estava encostada. Seu único desejo era arrancar aquela roupa, agora suja e molhada, mas que antes lhe dera tanta esperança, tomar um belo banho e cair na cama, encerrando assim um domingo de desengano. Só pode banhar-se da cintura para baixo. Dormiu com com a camisa encharcada. Não conseguiu desatar o nó da gravata.