sábado, 14 de novembro de 2020

Homero Condorero

Homero teve meningite aos três anos, sarampo mal curado aos três e meio, catapora e caxumba nos meses que se seguiram. Caiu de uma goiabeira aos sete anos e quebrou a cabeça, e aos quinze foi mordido por cachorro louco. Ninguém podia prever o futuro brilhante que teria na História do seu país. 
Seu pai, Paco Comdorero, era anarquista, e não se limitava em não acreditar em Deus. Tinha raiva dele. Se Deus aparecesse qualquer dia nas bodegas em que ele passava o tempo consertando o mundo e tomando vinho barato, certamente o valente anarquista lhe passaria o facão. Mas dona Mercedez, a esposa, escondida fez um responso para a Virgem dos Penedos, padroeira da República de Diosnoslibre, e o menino sarou, e cresceu um bonito moleque forte, inteligente e, como deve ser, às vezes desobediente e preguiçoso. 
Esta história se passa em Paso de las Caramba, cidade da citada e incrível República de Diosnoslibre. E o menino mirradinho, criado a pão velho e vinho barato teve papel importante na História do seu país.
Sarou da meningite, do sarampo mal curado, da catapora e da caxumba, de um coice de cavalo aos cinco anos e do atropelamento de um caminhão, que sofreu aos doze anos. Mas não se livrou de uma doença pior: aos 18 anos virou poeta. Primeiro por amor a uma menina sardenta da sua vizinhança, depois por desamor à aquela ingrata, um pouco por herança do anarquismo do seu pai, um pouco por uma crise religiosa que durou menos que o sarampo, a catapora e a caxumba. Mais tarde, por não ter outra coisa a que se dedicar, e por que a mãe religiosa, o pai ateu, os vizinhos desocupados e o padre da cidade gostaram das diversas fases da sua poesia. Apenas as meninas, infelizmente, não se entusiasmaram por sua fase romântica. Ele não se casou.
Aos 20 anos despediu-se dos pais e passou a percorrer o país, que não é muito grande, na tentativa de mostrar seus dons, pois não lhe bastava ser poeta em sua aldeia. Esteve em Caravaca, capital do país, onde declamava poemas em praças, bodegas, escolas e porta das poucas fábricas existentes. Começou a cantar a beleza da mulher diosnoslibrense, a beleza das montanhas do país, coisas assim. As pessoas atiravam moedas em seu chapéu, e ele ia vivendo sem luxo, mas sem problemas. 
Um dia, com saudade do pai, lembrou-se de seus discursos à porta das bodegas, e fez um poema inspirado neles. A republiqueta passava por um momento de crise, como sempre, e ele foi aplaudido efusivamente por uma multidão de desempregados. Não lhe atiraram moedas por que não tinham, mas o levaram a um grupo de estudantes que, entre uma Coca cola e uma mastigada em folha de coca, ouvindo e curtindo músicas americanas e imitando as modas e trejeitos do povo daquele país, se diziam revolucionários.
Assim, mesmo sem ter concluído o curso básico, passou a frequentar as poucas faculdades do país, que fabricavam anualmente centenas de bacharéis , com o honroso título de doutor. Passou a ser citado em jornalecos críticos, e logo tornou-se um líder popular. Ganhou dinheiro e fama.
Diosnoslibre havia passado por uma curta monarquia, por várias ditaduras de esquerda ou de direita, ou das duas coisas ao mesmo tempo, e preparava-se para as primeiras eleições democráticas depois da pior ditadura da sua História. Partidos políticos brotavam em lanchonetes, campus universitários e saunas. Os estudantes amigos de Homero também fundaram o seu, e tinham que lançar uma candidatura à Presidência da República. A escolha caiu em Homero Condorero, naquelas alturas cognominado de "poeta dos humilhados”. Ele aceitou, não custava nada. continuaria andando de praça em praça, não mais recitando poesias, mas pedindo votos. Havia quem financiasse, dinheiro agora sobrava. Foi uma farra! Eram festas, churrasco, cerveja, coquetéis e cantoria. Ah, se seu Paco Condorero estivesse vivo!
Concorreram dezenove candidatos. Dois ou três eram políticos, já haviam participado de outras eleições, ocupado cargos públicos, e, pelo menos na voz do povo, se fartado de roubar. Se voz do povo é voz de Deus... Os outros eram aventureiros, sonhadores, anarquistas, comunistas, nazistas e pastores das mil e tantas religiões que prometiam um pedaço do Céu a todos, mediante preces e módicas prestações mensais em forma de esmola.
Terminada a eleição, apurados os votos, 47% dos votos eram nulos, e, dos votos válidos, uma pequena maioria era a favor de Homero Condorero.Seus eleitores fizeram a festança, regada a cerveja e uísque, quebra-quebra , rojões e tiros de garrucha, alguns para cima, outros contra adeptos de outros candidatos. De madrugada, cheios de fervor cívico e álcool, notaram que o presidente eleito havia desaparecido. Não apareceu mais, nem nos dias da diplomação e da posse. Atravessou a cordilheira, foi parar no Pacífico, embarcou como clandestino em um navio, e foi desembarcar no porto de Santos, no Brasil. Dizem que virou camelô.

Da série “Historinhas para gente grande”
Arquivo criado em 03/12/2017, última alteração em 13/02/2018

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Meu amigo imaginário

Quem é Epaminomdas? Ora, é nada mais, nada menos que o meu travesseiro. Batizei-o por brincadeira, com meu amigo Wender Cardoso, o “Mãozinha”, que durante muito tempo foi meu guia, meu ledor,confidente e parceiro de aventuras imaginárias. Talvez, no transcorrer deste livro, eu fale mais dele, não sei. Agora quero falar de Epaminondas, que pode ser tamb´´em meu amigo imaginário. Se as criancinhas tem seus amigos imaginários, que pode ser seu cachorro, seu gato ou o personagem de um gibi, por que um sexagenário não pode? Sim, por que quando eu inventei esse nome para o travesseiro, era apenas sexagenário.
Se conversar com o travesseiro é coisa de maluco, eu não estou sozinho nesse hospício. Conheço muita gente que conversa com o seu, embora ele seja o único que tem nome.Os denais travesseiros, coitados, servem apenas como símbolo para pessoas que se julgam honestas e cumpridoras dos seus deveres, e gabam-se de repousar sossegadas com ele, sem peso na consciência, Ou pessoas que arrumam encerenca e à noite o consultam, esperando um conselho amigo. Funcionam melhor do que um pai, uma mãe, marido ou mulher, ou até um padre confessor, por que não falam, não cobram, nem dão penitência.
O Epaminondas é diferente. Ouve atentamente a minha tagarelice, e responde. Não por som, ele é mudo de nascença, embora não seja surdo. Comunica-se por escrito. É impressionante as páginas que leio à noite. Principalmente agora, que a dedficiência visual me tornou analfabeto. Leio páginas inteiras, muito instrutivas, cheias de filosofia ou informações. Mas é gozador, e quando estou entretido na leitura, embevecido com os ensinamentos e conceitos, de repente passa para a maior sacanagem, com palavrões, baixarias, acusando-me de coisas que sou mesmo, mas que procuro disfarçar. Talvez ele tenha complecxo de grilo falante, a consciência de Pinóquio.

25/06/2016

sexta-feira, 13 de junho de 2014

A Pátria dos Bons

De vez em quando saio com o poeta Wender Cardoso para divulgar meu livro “Canção Pro Sol Voltar”.

Numa dessas cheguei à porta do Sindicato do Comércio Varejista de Guarulhos. O horário de expediente havia terminado e uma funcionária já havia fechado a porta e estava indo embora. Pensamos em dar meia volta, mas ela nos atendeu, tornou a reabrir e comunicou-se com alguns diretores que ainda estavam em reunião, fomos bem atendidos e vendemos alguns livros.

A historia como vimos é simples. Vendemos alguns livros. Os funcionários comuns ao terminar o expediente vão embora gozar de merecido descanso. Não tem obrigação de atenderem retardatários. Essa moça, mais do que zelosa funcionária, mostrou ter boa vontade, qualidade que merece elogios num mundo tão matemático como o nosso. Coloco como epígrafe no meu livro uma frase do poeta russo Ievgeny Evstushenko, do livro Autobiografia Precoce: ”Sou patriota da pátria dos homens bons”. O poeta rompeu com o comunismo porque queria cantar as coisas simples dos homens e da natureza, e seus líderes queriam que cantasse O trabalho, a Máquina, a Produção e o Sistema.

O mundo não se consertará com discursos demagógicos, arruaças, e muito menos com revoluções sangrentas. Mas atitudes simples como a da funcionária revelam que a pátria dos Homens Bons não está tão despovoada como pensam os pessimistas de plantão.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Meu par de sapatos

            Eu devia ter uns sete ou oito anos quando meu pai me comprou um par de sapatos. Até então eu só andava descalço durante o dia, brincando na chácara onde morávamos, trepando em goiabeira e catando goiaba, cavando a terra com as mãos ou uma colher velha, fazendo bonecos de barro. Ou catando esterco de vaca para meu pai adubar a sua horta. À noite eu, meus irmãos e a prima que morava conosco lavávamos os pés no tanque, com sabão, e calçávamos tamancos. Depois jantávamos e íamos dormir. Era uma vida sossegada.
            Quando mostraram os sapatos novos eu queria calçá-los imediatamente. Minha mãe falou que eu os estrearia quando fôssemos à casa da tia Wally. Era a nossa tia rica, morava em São Paulo, na Aclimação. Era a irmã mais velha do meu pai, e pelo menos uma vez por mês íamos visitá-la. Nós, crianças, gostávamos da comida dela, dos doces que ela sempre tinha, e dos carros que víamos passar no trajeto. Eu gostava também do seu banheiro, da descarga, do papel higiênico, que me parecia o máximo de chic. A partir de então, a próxima visita seria também a oportunidade de estrear meu primeiro par de sapatos.
Aquele mês parece que durou uns noventa dias. Mas felizmente chegou o feliz dia, e todo contente calcei meus sapatos novos. A alegria durou pouco. Meus pés, acostumados com a liberdade reclamaram, e doeram muito. O alívio foi quando chegamos à casa dela e eu pude descalçar. À noite, na hora de voltar, vim descalço. Minha tia não tinha um par de tamancos para emprestar.
            Por que estou me lembrando disso agora? É que tenho medo que a Copa do Mundo seja o par de sapatos novos do menino Brasil A diferença é que parece que não estamos esperando ela como a mesma ansiedade das copas anteriores. Ou com a mesma ansiedade com que eu esperava o dia de visitar a minha tia.

Folha Metropolitana, 25/04/2014

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

eu também sou assim de vez en quando,

Eu também sou assim de vez em quando
quero fugir, mas eu não sei de quem,
quero partir, quero pegar o trem,
quero ficar en casa te esperando.

Quero voar, quero ganhar altura,
quero ficar num canto escomdido
se pemso que me encontro estou perdido,
fico invisível se alguém me procura.

Não sei se sou adulto ou sou menino,
não sei se sou maluco ou sou pateta,
não sei se sou bomzinho ou sou ruim,

não sei qual é na vida o meu destino,
não sei se sou assim por ser poeta,
ou se poeta sou  por ser assim. 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Árvore dos Problemas

    Esta é uma história de um homem que contratou um carpinteiro para
ajudar a arrumar algumas coisas na sua fazenda.
    O primeiro dia do carpinteiro foi bem difícil. O pneu da seu carro
furou. A serra elétrica quebrou. Cortou o dedo. E ao final do dia, o seu
carro não funcionou.
    O homem que contratou o carpinteiro ofereceu uma carona para casa.
Durante o caminho, o carpinteiro não falou nada.
    Quando chegaram a sua casa, o carpinteiro convidou o homem para
entrar e conhecer a sua família.
    Quando os dois homens estavam se encaminhando para a porta da
frente, o carpinteiro parou junto a uma pequena árvore e gentilmente
tocou as pontas dos galhos com as duas mãos.
    Depois de abrir a porta da sua casa, o carpinteiro transformou-se.
    Os traços tensos do seu rosto transformaram-se em um grande sorriso,
e ele abraçou os seus filhos e beijou a sua esposa.
    Um pouco mais tarde, o carpinteiro acompanhou a sua visita até o
carro.
    Assim que eles passaram pela árvore, o homem perguntou:
    - Porque você tocou na planta antes de entrar em casa ???
    - Ah! esta é a minha Árvore dos Problemas.
    - Eu sei que não posso evitar ter problemas no meu trabalho, mas estes
problemas não devem chegar até os meus filhos e minha esposa.
    - Então, toda noite, eu deixo os meus problemas nesta Árvore quando
chego em casa, e os pego no dia seguinte.
    - E você quer saber de uma coisa?
    - Toda manhã, quando eu volto para buscar os meus problemas, eles não
são nem metade do que eu me lembro de ter deixado na noite anterior.
(Autor Desconhecido)

domingo, 21 de abril de 2013

Cachorros

Sol de inverno, sol bonzinho,
que chega devagarinho,
depois se instala de vez.
Depois faz um calorão,
como pedindo perdão
pelo frio que à noite fez.

Os cachorros vira-latas
depois da noite sofrida,
felizes, deitam-se ao sol,
Não pensam no fim do mundo,
no alto custo de vida,
no preço da gasolina,
na final do futebol,
querem o sol, simplesmente.

Ao seu lado passa gente.
Passam todos apressados,
fortemente agasalhados,
em busca da condução
para não perder a hora.

O sol não lhes interessa,
seu dia-a-dia tem pressa.
Suas contas atrasadas,
suas vidas mal passadas,
sua angústia sem socorro.

Ah, se o sol nascesse pra todos!
Ah, se fôssemos cachorros!

Castelo Hanssen