quinta-feira, 29 de maio de 2008

Vacas, alambiques e cachaça da boa

A Câmara dos Deputados aprovou uma lei regulando a venda de bêbidas alcoólicas nas rodovias brasileiras. Felizmente, teve o bom senso de permitir a venda dessas bebidas no perímetro urbano. Porque, com o crescimento das cidades, muitas rodovias acabam se transformando em avenidas. É o caso da estrada de Nazaré Paulista, em Guarulhos, da estrada de Itapecirica da Serra, no centro daquela cidade, e até da Raposo Tavares, em Cotia. Ainda bem que a avenida Guarulhos nunca foi denominada estrada, mesmo no tempo em que tinha essa característica.
No entanto, no tocante a penalizar motoristas que tenham ingerido alguma bebida, ela foi drástica. Há muitos anos, eu sou um total abstêmio. Não por religião, filosofia ou qualquer princípio, mas por causa do diabetes. Os médicos me proibem tudo que eu gosto, e eu obedeço, porque gosto da vida, apesar de tudo. Mas não vejo sentido em penalizar alguém que bebeu sua cervejinha, está perfeitamente sóbrio e dirige seu carro. Quem, alcoolizado ou sóbrio, por um descuido, mata, fere ou causa prejuízo em alguém, deve responder por crime culposo, mas não doloso. Uma pena não exagerada. Qualquer pessoa que não possa responder pelos seus atos deve ser impedida de circular, para sua própria segurança e a dos outros. O resto, me parece moralismo piegas de colégio de freiras.
Falando em estradas e em bebidas, volto à minha juventude e lembro-me de um caminho que conhecíamos como estrada do Sapopemba, que vai daquele bairro paulistano até Ribeirão Pires, no entroncamento com a rodovia que liga aquela cidade a Suzano. Passava por matas e propriedades rurais, e andei muito por lá, a pé ou de bicicleta.
Havia um sítio onde criavam vacas, fabricavam queijo e doces, havia um alambique e minha turma era freguesa de uma pinga composta com coco, a popular coquinho. na entrada, uma placa rústica anunciava a venda de vacas, pinga de alambique, queijo, manteiga e doces.
Quando veio a proibição da venda de bebida alcoólica em estradas, os proprietários se limitaram a riscar a palavra “pinga”, esquecendo, porém, a expressão “de alambique”, e a placa passou a anunciar a venda de “vacas de alambique”.

sábado, 24 de maio de 2008

Obsolescência ao alcance de todos

"Não sou negro, mulher, homossexual ou ex-presidiário - queixa-se meu amigo Euciel - A quem poderei apelar?" Ele tem razão. É branco, homem, heterossexual, nunca foi preso e é poeta. Além disso, está desempregado.
Euciel trabalhou em uma grande empresa multinacional, ganhava um salário até razoávelmas não tinha tempo de se dedicar à poesia e a outras coisas de que gostava. O trabalho que exercia tornou-se obsoleto graças (ou desgraças) ao avanço tecnológico e ele foi demitido. Agora tem tempo de sobra, mas enfrenta o duro problema da sobrevivência.
Na realidade, todos nós, independente de sexo, raça, opção sexual ou condição social já nos tornamos obsoletos. A humanidade se divide entre ricos ou pobres. Todos submissos ao fantasma da produtividade. Os pobres se dividem em empregados ou desempregados. Os desempregados são considerados inúteis e enfrentam esse problema de sobrevivência. Os empregados ganham salários, alguns até razoáveis, têm como sobreviver mas não têm como viver e gozar os prazeres menos materiais. São peças utilitárias e trabalham dez, doze ou dezoito horas por dia para não perder o emprego ou status. Segundo alguns, para garantir qualidade de vida, que significa ter uma boa casa e um bom carro, embora quase não fiquem em casa e só usem o carro para dirigirem-se ao trabalho.
Alguns conseguem se aposentar, e pensam que isso é um prêmio pelos seus anos de vida utilitária. Aos poucos, notam que é um castigo, pois o que ganham não dá para sobreviver dignamente e muito menos para viver inteligentemente. A aposentadoria é devorada pela inflação, um fantasma em que a propaganda oficial não acredita, mas que existe.
Euciel não sonha em ficar rico publicando livros de poesia, até porque as editoras só se preocupam com o lucro fácil dos best-sellers e dos livros de auto-ajuda. Quer apenas o direito de pensar, sobreviver e viver em seus pensamentos. Talvez, a única solução para ele ser protegido ou, pelo menos, cadastrado e reconhecido, seja incluir-se no item "espécies em extinção".

Romualdo e Juliana

-“Todo mundo homenageia Juliana na janela...” Pô, tenho que parar de cantar essa isso... Mas onde está essa porcaria? Ela tá sempre comigo, nunca largo, e agora? Ontem, cheguei em casa meio de fogo, meio cansado. Na hora de tirar a camisa deve ter caído por aí. Manhê, você viu os papéis que tavam no meu bolso ontem? Não viu, porcaria... Juliana... Ah não, agora ela é Joly, J-o-l-y... Essa porcaria desse y... E é paroxítona, Joly. Com acento no ó, só que não escreve esse acento... Eu tinha uma cachorra chamada Joli, e era oxítona... Romy e Joly, que frescura... Mas onde fui botar essa papelada... A foto dela, o telefone, meu RG, o diabo... Ah, Juliana, tudo poderia ter sido diferente, você não acha? Mas você virou Joly... O culpado de tudo foi o Roberto Carlos... Mas onde diabo eu pus essa porcaria? Vai ver minha mãe viu essa papelada toda jogada e resolveu arrumar encafuada num cantinho que nem ela sabe mais... Mania de mulher... Tava no meu bolso ontem à noite... “Você precisa estudar, Romy. Você é tão inteligente”... Ela faz faculdade e eu parei no primário... Vai ver que ela tem vergonha de andar comigo... Ela secretária executiva, eu ajudante geral... Fiz um samba pra ela. Ela disse que gostou... Eu sou metido a poeta... Tinha um jeitinho de samba bossa... “Fiz um verso de amor, todo cheio de prosa”...

Ô dia difícil de passar. Romualdo não podia se concentrar no trabalho nem deixar de pensar em Juliana. Os papéis perdidos eram como um amuleto que se carrega junto aos documentos.

O amor de Romualdo e Juliana era bonito, mas não podia dar certo. Que nem a história de Romeu e Julieta. Eram de tribos diferentes. Ela granfininha, ele caipira. Ele participando de passeatas contra ditadura militar. Ela só se preocupava com bailinhos, com luz estroboscópica, com as roupas da moda. Ele nacionalista, de caipira, de Nelson Gonçalves, de Chico Buarque. Ela de Elvis Presley e yê yê yê.

Mesmo assim, ele insistia. “Não quero mais esse negócio de você longe de mim”. E ela: “sou a garota papo firme que o Roberto falou”. Era isso que estragava tudo, Roberto pra cá, Roberto pra lá. Como se o Roberto Carlos fosse coleguinha dela, um rival seu. Aí ela deu de querer ser cantora jovem e adotou o nome de Joly, e o batizou de Romy...

- Recapitulemos. Eu saí da churrascaria por volta das onze e meia da noite, tomei a lotação, que realmente estava lotada, fui em pé. O cobrador pediu moedas para facilitar o troco, elas estavam no bolsinho da camisa. Lembro-me de ter tirado toda a papelada para tirar as malditas moedas, depois... Estava muito apertado, com certeza não consegui enfiar tudo no bolsinho de novo. É perdi na lotação... Paciência... O RG eu tiro uma segunda via, amanhã eu vou na delegacia fazer um BO, o resto era papelada sem importância... A letra do sambinha, que bobagem, a foto dela eu já deveria ter rasgado há muito tempo... Juliana Spacca, você saiu definitivamente da minha vida, não quero mais esse negócio de viver sofrendo assim.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Quem fez isso no pé da goiabeira?

Incêndio na fazenda do doutor Adauto Aroeira. O casarão totalmente destruído. Dizem que foi explosão num depósito de pólvora que ele mantinha. Segundo ele, para as festas populares que gostava de realizar. Segundo seus inimigos, para armar seus capangas. Numa coisa, todos concordam: o incêndio foi proposital. Adauto Aroeira tinha muitos inimigos.
A polícia investigou minuciosamente cada palmo da fazenda, cada pé de cana e cada rastro de vaca. E descobriram, ao pé de uma goiabeira, excrementos humanos. Exames periciais mostraram que a "obra" era bem anterior à data da explosão, mas nem por isso cessaram os comentários. Quem foi o vilão (ou justiceiro) que além de detonar o casarão ainda fez aquilo no pé da goiabeira? Seriam os sem-terra? Seria o atual prefeito, eleito sem o apoio do poderoso Adauto Aroeira? Seria o ex-prefeito, aliado incondicional dele, para culpar o atual?
O tempo passou e só "aquilo" no pé da goiabeira ainda alimenta os comentários e até alguma matéria no semanário ou na emissora de rádio locais.
Da explosão, quase ninguém mais comenta. Da existência ou não de um depósito de pólvora, e de qual seria sua utilidade, pouco se fala. Todos esqueceram-se também das denúncias e escândalos surgidas pouco antes do evento contra o poderoso Aroeira, que tem um genro deputado governista. Só o objeto esturricado e já inodoro encontrado ao pé da goiabeira é assunto do jornal, da rádio e dos bate-papos nos botecos da cidade.
Essa história parece meio besta, mas ninguém estranha um fato semelhante que vem ocorrendo no planalto central. Uma inexperiente ministra foi acusada de usar indevidamente seu cartão corporativo. Descobriu-se que outros ministros faziam o mesmo, e logo apareceu a idéia de uma CPI. Investiga-se só a gastança do atual presidente ou também do seu antecessor. Ei, apareceu um tal dossiê sobre o governo anterior. Dossiê ou relatório? Esquecida a gastança, a questão agora é saber quem vazou possíveis informações de um possível dossiê sobre possível gastança do ex-presidente. Quem fez aquilo no pé da goiabeira?

terça-feira, 20 de maio de 2008

Rio acima

Navegando rio acima

num barquinho de papel,

numa aventura cruel,

cuja esperança me anima,

eu vou atrás de uma rima

que rime com tudo, enfim

que existe dentro de mim

e nunca será olvidado.

Eu vou atrás do passado

da nascente de onde eu vim.

Como um novo bandeirante,

de costas para o oceano,

eu vou seguindo o meu plano,

meu viver itinerante

e nesse buscar constante,

nessa viagem sem fim,

quero ser um curumim,

um molequinho levado,

que hei de encontrar no passado,

na nascente de onde eu vim.

Cansado de modernagem,

quero voltar às origens

para fugir das vertigens,

para fugir da miragem,

e nessa louca viagem

eu quero fugir assim,

de um presente tão ruim,

de tanto sonho frustrado

e vou atrás do passado

da nascente de onde eu vim.

Nesta viagem de volta

quero rever as paisagens

que vi na outra passagem.

Paisagens talvez já mortas,

escritas por linhas tortas,

em garranchos de nanquim,

começando pelo fim

no meu errar acertado

eu vou atrás do passado

da nascente de onde eu vim.

Nas margens da minha vida

vi tantas flores se abrindo,

a natureza sorrindo,

paisagens hoje esquecidas,

que muita gente duvida

até da cor do jasmim,

do perfume do alecrim

e dos campos orvalhados,

mas vou atrás do passado,

da nascente de onde eu vim.

E mesmo assim, com coragem

vou levando meu barquinho,

pois aprendi a ser sozinho

e nem olhar para a margem.

Quando sentir as paragens

que pairam dentro de mim,

eu terei chegado enfim

ao meu país encantado,

terei chegado ao passado,

à nascente de onde eu vim.

Foi Melhor Assim

Quando te vi no bar, rindo e brincando
entre amigos, estranhos para mim
Me perdi nos teus olhos, fui ficando
sem rumo, sem princípio, meio ou fim.

Qual seria o teu nome, a tua idade
que pensarias tu caso soubesses
deste pobre poeta, da ansiedade
dos seus sonhos, desejos, suas preces?

Mais foi melhor assim
Tu foste embora, eu paguei minha conta, e sem demora
fui pra casa dormir nos braços teus.

Esses seus braços que eu só tive em sonhos
Pensamentos sublimes, bons, risonhos
Eu não te conheci, não houve adeus.