sexta-feira, 21 de março de 2008

Ah Renato...

- Renato, você foi ingrato, me levou pro mato, me... – Flor Casta riu do versinho saca que aprendeu com a molecada. Não havia motivo para rir, mas ela aprendera que o riso é a única vingança contra os azares da vida. Ria quando seu pai, sem motivo, a espancava. Ria ao ouvir a mãe chorando num cantinho, sem coragem para tomar providência. Riu, cínica, quando ele a deflorou. Riu, nervosa, quando a mãe, num gesto inesperado de coragem, munida de um facão de cozinha, cortou a jugular do amante monstro. Riu, baixinho, quando a polícia a levou, e sorriu triste quando soube que ela suicidou no presídio feminino.

- Ah, Renato...!

Mas o que poderia fazer, chamar a polícia? Mas a polícia não se preocuparia com os problemas de uma mulher como ela. Além disso, nem sabia o nome do cara. Sabe, ele disse chamar-se Renato, mas poderia ser nome falso. Ela também dera o nome de Sônia. Tinha vergonha do nome que recebeu na pia bapismal.

- Vai ver que o filho da puta se chama Flor Casto – e riu novamente da própria piada.

Mas que era lindo, era. Com sua calça de jeans, a camiseta mais a exibir do que a esconder o tórax forte, e aquele sorriso divino. E falava bonito. Parecia um artista de novela. E se era bonito com a roupa, descascado então, vixe! No quarto, enquanto ele se despia, ela olhava extasiada.

E como fazia amor! Ela chegou a lembrar seus tempos de menina boba, quando sonhava com a lua-de-mel, pensou até ter encontrado o homem de sua vida. Após o orgasmo, enquanto se vestiam, chegou a sonhar com uma casinha branca, de janelas vermelhas, em um bairro bem longe dali.

De repente... Renato atirou-se sobre ela, jogou-a de volta à cama, e ela, assustada e sem saber o que estava acontecendo, sentiu um vulto perpassar, ouviu o barulho do criado-mudo sendo derrubado e as portas do quarto batendo. Quando teve coragem de abrir os olhos, notou que o crucifixo que encimava sua cama havia desaparecido. A gaveta do criado-mudo fora arrancada e nem sinal da bolsinha em que guardava as poucas economias, alguma bijuteria e o retrato da mãe.

- Ah, Renato...

No quarto, além da cama amarfanhada, do cheiro penetrante de esperma e perfume caro, mais nada.

Guilherme e Enock

- É, Enock, só nós dois aqui – queixava-se Guilherme ao amigo. – Só você me resta. Você é meu único amigo, sempre foi. Desculpe, mas só agora eu percebi.

Enock acompanhava as palavras do amigo, fitando seus olhos doces, sem nada falar.

- Ah, quantas aventuras eu vivi! Quantas viagens, quantas mulheres, quantos hotéis, dos mais luxuosos aos mais pés-de-chinelo, o que valia era a aventura. E os amigos, as cervejadas, as serenatas? Ah, mas tudo acabou. Todos me abandonaram.

Enock apenas encostava a perna no joelho do amigo, solidário com sua dor.

- Ainda bem que eu tenho você. Ainda bem que você nunca me abandona. Puxa, porque eu não te conheci antes... Ei, onde você vai?

Na rua, uma cadelinha dengosa no cio passava, atraindo atrás de si um séquito de admiradores, entre latidos , ganidos e mordidas. Com uma agilidade surpreendente para seus doze anos, Enock, o cachorro esgueirou pela porta semi-aberta, saltou sobre o portãozinho e foi juntar-se ao fã clube canino.